No século XVI, logo no início da colonização portuguesa, algumas tribos indígenas brasileiras, como os tupinambás, ficaram conhecidos por uma prática muito peculiar: a antropofagia, que é o ato de comer carne humana. Existiam vários motivos pelos quais as tribos tinham essa prática, onde na maioria dos casos ela era uma atividade de cunho ritualístico.
Por mais que ela seja muito confundida com o canibalismo, é importante saber que os dois termos são diferentes. A antropofagia é o ato de comer uma ou várias partes de um ser humano como algo ritualístico, enquanto que o canibalismo é um hábito alimentar associado ao comportamento predatório.
A antropofagia no Brasil acabou ficando muito famosa por conta de relatos de alguns viajantes europeus que presenciaram esses rituais, como o caso do pirata inglês Anthony Knivet, que fez uma descrição detalhada do ritual, e também do mercenário alemão Hans Staden, prisioneiro dos índios tupinambás entre 1554 e 1557 e que narrou o ritual com detalhes.
O ritual de antropofagia dos tupinambás
Os tupinambás era a tribo indígena brasileira que possuía o ritual de antropofagia que ficou mais conhecido. No ritual, a vítima era capturada em campos de batalha, e pertencia àquele que primeiro a houvesse tocado.
Quando ele era conduzido até a aldeia, as mulheres e crianças o insultavam e maltratavam, mas após essas agressões ele era bem tratado, onde recebia uma companheira e podia andar livremente pela aldeia, contando que não fugisse.
A vítima também passava a usar uma corda presa ao pescoço, onde os índios a utilizavam para indicar o dia da sua execução, que poderia demorar vários dias ou até anos. Quando a data se aproximava, os guerreiros preparavam a clava com a qual a vítima seria abatida. O ritual em si, poderia durar quase uma semana e toda a tribo, sem exceção, participava.
Na véspera da execução, o prisioneiro era banhado e depilado e depois seu corpo era pintado de preto, untado de mel e recoberto por cascas de ovo e plumas. Ao entardecer, os índios bebiam o cauim, uma bebida fermentada de mandioca. No dia seguinte, o carrasco da vítima andava pelo pátio enquanto ameaçava a pessoa, e por fim dava um golpe mortal de tacape na nuca da vítima.
Existe um trecho de um texto com o título “O Banquete Antropofágico” do livro História do Brasil, que mostra a partir da narrativa de Hans Staden, o que a tribo fazia com o corpo da vítima após ter morrido.
“Velhas recolhiam, numa cuia, o sangue e os miolos; o sangue devia ser bebido ainda quente. A seguir, o cadáver era assado e escaldado, para permitir a raspagem da pele. Introduziu-se um bastão no ânus, para impedir a excreção. Os membros eram esquartejados e, depois de feita uma incisão na barriga do cadáver, as crianças eram convidadas a devorar os intestinos.”
“A seguir, retalhava-se o tronco, pelo dorso. Língua e miolos eram destinados aos jovens. Os adultos ficavam com a pele do crânio e as mulheres com os órgãos sexuais. As mães bebiam o bico dos seios em sangue e amamentavam os bebês. As crianças eram encorajadas a besuntar as mãos no sangue vertente e celebrar a consumação da vingança. Os ossos do morto eram preservados: o crânio, fincado numa estaca, ficava exposto em frente da casa do vencedor; os dentes eram usados como colar e as tíbias se transformavam em flautas e apitos.”
Relato do ritual de estrangeiros
Além do alemão Hans Staden, o pirata inglês Anthony Knivet também presenciou e relatou uma execução de portugueses feitos de prisioneiros pelos índios. Ele foi capturado com mais doze pessoas, e conseguiu sair vivo porque disse que era francês, que na época era um país aliado.
“Duas horas depois levaram um dos portugueses, amarraram-lhe outra corda à cintura e conduziram-no a um terreiro, enquanto três índios seguravam a corda de um lado e três do outro, mantendo o português no meio. Veio então um ancião e pediu a ele que pensasse em todas as coisas que prezava e que se despedisse delas pois não as veria mais. Em seguida veio um jovem vigoroso, com os braços e o rosto pintados de vermelho, e disse ao português: “Estás me vendo? Sou aquele que matou muitos do teu povo e que vai te matar.” Depois de ter dito isso, ficou atrás do português e bateu-lhe na nuca de tal forma que o derrubou no chão e, quando ele estava caído, deu-lhe mais um golpe que o matou. Pegaram então um dente de coelho (provavelmente de capivara), começaram a retirar-lhe a pele e carregaram-no pela cabeça e pelos pés até as chamas da fogueira. Depois disso, esfregaram-no todo com as mãos de modo que o que restava de pele saiu e só restou a carne branca. Então cortaram-lhe a cabeça, deram-na ao jovem que o tinha matado e retiraram as vísceras e deram-nas às mulheres. Em seguida, o desmembraram pelas juntas: primeiro as mãos, depois os cotovelos e assim o corpo todo. Mandaram a cada casa um pedaço e começaram a dançar enquanto todas as mulheres preparavam uma enorme quantidade de vinho. No dia seguinte ferveram cada junta num caldeirão de água para que as mulheres e as crianças tomassem do caldo. Durante três dias nada fizeram a não ser dançar e beber dia e noite. Depois disso mataram outro da mesma maneira que lhes contei, e assim foram devorando todos menos eu.”
Outro europeu que refletiu mais sobre a prática da antropofagia no Brasil foi o filósofo francês Michel de Montaigne, que escreveu um ensaio chamado “Dos Canibais”, onde pensou e comparou a forma que a civilização europeia estava organizada em contraste com a tribo tupinambás.
O destino final da antropofagia
Quando os missionários jesuítas vieram para o Brasil, eles ficaram horrorizados com a prática da antropofagia que os indígenas praticavam, e devido a isso, o ritual passou a ser fortemente combatido já que não era compatível com os valores critãos.
Atualmente, a tribo dos ianomâmis ainda conserva o hábito de comer as cinzas de um amigo morto, em sinal de respeito e afeto. Alguns estudiosos atribuem esse costume à identificação mística entre homens e plantas. Isso ocorre porque os indígenas notaram como as plantas ficavam mais saudáveis após colocar cinzas nelas, então eles deduziram que ingerir as cinzas de entes mortos permitia que as boas características do defunto fossem perpetuadas.
Para os antropólogos, a prática da antropofagia no Brasil é vista por diversos ângulos, sendo que um deles é o fato de que a prática pode ser categorizada como “exocanibalismo”, que indica que a tribo não comia a carne de membros da própria comunidade, e sim de tribos rivais, para vingar seus antepassados que tinham sido mortos por elas.