O documentário português “Nos mares da memória – estórias de uma faina maior” (Rui Bela, 2016) passou despercebido no Brasil. A produção lusa ganhou o prêmio de melhor documentário no festival internacional de Barcelona em fevereiro desse ano e, de quebra, suscitou um velho debate entre historiadores de todo mundo: qual o europeu “descobriu” a América? Desde o mais simples livro didático até as publicações mais especializadas no assunto pouco ou nada se comenta sobre as incursões portuguesas no atual Canadá.
É impossível falar das grandes navegações compreendidas entre os séculos XV e XVIII sem citar antes, porém, a epopeia nórdica. Os Vikings mais de quatro séculos antes que quaisquer monarquias europeias haviam chegado a “Vinland”, região do estado canadense de Labrador e Terra nova. Na década de 1960, o antropólogo norueguês Helge Ingstad encontrou nessa região o sítio arqueológico “L’Ans aux Meadows”, onde encontrou evidências conclusivas sobre a tentativa de colonização nórdica no Canadá por volta do ano 990 — até aquele momento os indícios mais fortes conhecidos eram as “Groenlendinga Saga” (Saga dos Groelandeses). Os escritos relatam as viagens dos desbravadores nórdicos Bjarini Herjolfsson, Leif Ericson e Erik o vermelho pelas terras canadenses. Os Vikings, todavia, não se estabeleceram na região.
![Cartaz de lançamento do Documentário “Nos Mares da Memoria” do Diretor português Rui Bela (Clique aqui para ver a imagem em tamanho maior)](https://socientifica.com.br/wp-content/uploads/2017/04/nos-mares-da-memoria-1.jpeg)
Caberia, então, ao navegador e explorador italiano Jonh Cabot as honras de primeiro navegador europeu a desembarcar no Canadá (pós era viking)? Sim, segundo a versão mais conhecida e defendida, obviamente, pelos ingleses — os seus financiadores. Cabot, Veneziano de nascimento, mas a serviço da Inglaterra teria alcançado o litoral canadense no ano de 1497 em algum ponto entre Terra Nova e a atual Nova Escócia. No entanto, historiadores portugueses contestam o pioneirismo inglês. Entre eles Joaquim Verissimo Serrão, presidente da Academia Portuguesa de História.
![Reprodução de um Mapa Viking do Inicio do século XI na região do atlântico norte.](https://socientifica.com.br/wp-content/uploads/2017/04/droppedImage_3.jpg)
Segundo Serrão, João Fernandes da Ilha Terceira, popularmente chamado de Labrador (lavrador) teria sido contemporâneo de Jonh Cabot. Ao contrário do navegador ítalo-britânico, Fernandes não fez um breve desembarque receoso na costa canadense, mas dava sequência à continua exploração portuguesa nas ilhas do atlântico norte até o limite da Groelândia. Em 1499 João Fernandes, de volta a Europa, ofereceu as terras encontradas à corte inglesa. A oferta foi prontamente aceita e desde então seu codinome “labrador” passou para o nome da terra recém encontrada.
Entretanto, a tese mais defendida por Serrão refere-se o empreendimento marítimo dos irmãos Corte Real. Antes de Caboto (outro codinome de John Cabot), João Fernandes e João Vaz Corte Real chegavam à terra dos bacalhaus (a Terra Nova). A pesca do Bacalhau exerceu papel fundamental na busca por novas terras. Especialmente no atlântico norte, se buscava novos mares e como sequencia novas terras eram encontradas. O Sacerdote e “historiador” da época Gaspar Frutuoso, respeitada personalidade da sociedade açoriana, descreveu a viagem de Corte real e sua chega às terras canadenses em 1472. A Coroa Portuguesa em nenhum momento confiou nas “provas” da chegada de Caboto ao futuro Canadá. Assim, se concedeu a Vasco Corte Real a exploração da costa canadense. Enquanto Cristóvão Colombo sequer sonhava com sua viagem às índias navegando pelo ocidente (1492), Corte Real delineava seus planos de conquista da “América”.
![Rota de João Vaz Corte Real rumo a Terra Nova.](https://socientifica.com.br/wp-content/uploads/2017/04/Rota-de-Jo%C3%A3o-Vaz-Corte.jpg)
O empreendimento português-açoriano sofreu, porém, um revés que selou o fim da tratativa de colonização português no Canadá. Na sua terceira viagem, em meados de 1501, sua caravela se perdeu e Corte Real nunca foi encontrado. No intuito de resgatar o irmão, Miguel Corte Real viajou à Terra Nova em 1502 e teve o mesmo destino que o irmão: desapareceu sem deixar vestígios. Diante dos infortúnios, Portugal decidiu suspender as missões na região.
Existem teorias nunca comprovadas de que Corte Real teria sobrevivido e percorrido o litoral canadense e estadunidense. Defensor dessa teoria, o pesquisador Edmundo Delabarre da Brown University (1863 – 1945) baseou-se na interpretação de escritos encontrados na Pedra Dighton. Localizada em Massachusetts no ano de 1916, o pedaço de rocha possuía, segundo Delabarre, o dizer “Voluntate Dei hic dux indorum anno Domini 1511” (Miguel Corte Real pela vontade de deus chefe dos índios 1511).
![Estátua de João Vaz Corte Real nos Açores, Portugal.](https://socientifica.com.br/wp-content/uploads/2017/04/Est%C3%A1tua-de-Jo%C3%A3o-Vaz-Corte-Real-nos-A%C3%A7ores-em-Portugal.jpg)
A conquista da América (ou a sua descoberta, num sentido mais tradicional) é costumeiramente atribuída ao genovês Cristóvão Colombo a serviço da Coroa Espanhola. Muito antes, todavia, os portugueses açorianos haviam chegado à América pelo Canadá. A mesma região que outrora antes fora visitada pelos Vikings. O Canada Português nunca se concretizou, mas não é pouco que a maior cidade na província de Terra Nova e Labrador ainda seja conhecida como São João de Terra Nova. Esse importante capítulo das navegações portuguesas é brevemente descrito nas palavras do diretor de “Nos Mares da Memoria”, Rui Bela:
“Se Portugal tivesse que enumerar alguns dos seus feitos mais gloriosos, a descoberta dos mares gelados da Terra Nova e da Groelândia, bem como a pesca do bacalhau, seriam seguramente dois deles.”