O que todo mundo previa que iria acontecer, aconteceu: o desmatamento na Amazônia disparou de novo. Foram 9,7 mil quilômetros quadrados (km2) de floresta derrubados entre 1º de agosto de 2018 e 31 de julho deste ano — que é o período ótimo de observação que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) utiliza para calcular as taxas anuais de destruição da floresta. É a maior taxa de desmatamento dos últimos dez anos e a terceira maior taxa de crescimento anual da história: 29,5% em relação ao período de medição anterior (2017-2018), quando o desmate ficou na casa dos 7,5 mil km2.
Os dados foram divulgados na segunda-feira, em entrevista coletiva na sede do Inpe, em São José dos Campos, e amplamente noticiados pela imprensa nacional e internacional. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, reconheceu a alta, mas negou que ela seja culpa do governo Bolsonaro. Argumentou que se trata da continuação de uma tendência que vem desde 2012, quando o desmatamento chegou ao seu menor valor na história (4,6 mil km2), e voltou a crescer depois disso. Perguntado sobre as causas desse aumento, Salles disse que são “os motivos conhecidos”: “A pressão das atividades econômicas, grande parte delas ilegais, sobre a floresta”.
“Nós precisamos justamente ter as estratégias de alternativa econômica para a região”, afirmou o ministro, adotando uma postura muito menos agressiva do que a de ocasiões anteriores — como a da coletiva de 1º de agosto, em que ele levantou uma série de questionamentos sobre a evolução do desmatamento e a acurácia dos dados do Inpe. “Está demonstrado nesse movimento de sete anos de aumento do desmatamento que alguma coisa estruturante precisa ser feita”, concluiu ele.
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Disso, ninguém discorda. É fato que o desmatamento vem numa tendência de aumento desde 2012, como se pode ver nessa série histórica do Inpe (abaixo); mas há uma diferença crucial neste ano, segundo especialistas. Além de o crescimento desta vez ter sido maior do que o de anos anteriores, é a primeira vez que o desmate cresce “em parceria com o governo”, e não a despeito dele, segundo o pesquisador Paulo Artaxo, do Instituto de Física (IF) da USP.
O enfraquecimento da governança ambiental começou no governo Dilma, segundo ele, e se agravou durante a gestão Temer; mas a situação nunca chegou ao ponto de o discurso presidencial ser abertamente contrário à conservação, observa Artaxo. “O contexto deste ano é muito diferente.”
“O dado é decorrência direta da estratégia implementada por Bolsonaro de desmontar o Ministério do Meio Ambiente, desmobilizar a fiscalização, engavetar os planos de combate ao desmatamento dos governos anteriores e empoderar, no discurso, criminosos ambientais. O próprio presidente já declarou, com orgulho, que havia mandado seu antiministro do Ambiente, Ricardo Salles, ‘meter a foice no Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis]’. Salles obedeceu”, escreveu o Observatório do Clima, uma coalizão de dezenas de organizações ambientalistas.
Bolsonaro passou a campanha demonizando ambientalistas, endeusando ruralistas, desautorizando o trabalho de suas próprias agências de fiscalização (Ibama e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade/ ICMBio), ameaçando fechar o Ministério do Meio Ambiente e defendendo a exploração comercial da Amazônia. Uma vez eleito, desmontou várias das estruturas governamentais dedicadas à questão do combate ao desmatamento, cortou ainda mais recursos da área ambiental, prometeu acabar com áreas protegidas, comprou briga com parceiros internacionais, perdeu o Fundo Amazônia (que financiava justamente iniciativas do tipo que o ministro Salles reconhece agora serem necessárias), continuou a demonizar ambientalistas, criticar fiscais e até fez aliança com garimpeiros.
O resultado não poderia ser outro: a fiscalização arrefeceu e o desmatamento aumentou. “O discurso do presidente e do seu ministro passa uma clara mensagem de que as leis ambientais podem ser violadas”, diz o pesquisador Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus.
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“Aqueles que estão na fronteira do desmatamento não seguem a publicação de decretos e leis no Diário Oficial nem leem os detalhes das mudanças legais relatadas nos principais jornais. Suas informações são provenientes das mídias sociais, que espalham rapidamente as notícias de cada discurso inflamado do presidente e de seus ministros contra as agências ambientais do governo e contra as ONGs ambientais. É o clima gerado por esse discurso que influencia o comportamento no campo”, avalia Fearnside. “A culpa desse aumento no desmatamento é definitivamente do governo Bolsonaro.”
Salles convocou uma reunião com governadores nesta quarta-feira para discutir soluções para o problema.
Vigilância espacial
“Não dá para dizer que é apenas uma tendência natural, que o desmatamento está aumentando por inércia”, avalia o pesquisador Ricardo Galvão, também professor do Instituto de Física da USP e ex-diretor do Inpe — demitido do cargo no início de agosto, após rebater ofensas e acusações infundadas feitas pelo presidente, de que os dados do Inpe eram “mentirosos” e que ele estaria “a serviço de alguma ONG”.
Os números em questão até agora eram do sistema Deter, que utiliza imagens de baixa resolução para monitorar o que está acontecendo na floresta em tempo real. O Deter não é ideal para calcular o tamanho das áreas desmatadas, mas serve como um bom indicador da tendência do desmatamento.
Já os números divulgados na segunda-feira são do sistema Prodes, que utiliza imagens de alta resolução para mapear e mensurar, com precisão, as áreas desmatadas ao longo de cada ano. Fazendo uma analogia, o Deter funciona como uma câmera de segurança de baixa resolução, que não mostra muito bem a cara dos bandidos, mas soa o alarme a tempo de a polícia fazer alguma coisa a respeito. Já o Prodes é uma câmera de alta resolução, que mostra até a cor dos olhos do bandido, mas demora um ano para produzir uma imagem completa dele.
O resultado do Prodes ficou dentro do esperado com base nas estimativas do Deter, segundo especialistas. No acumulado dos 12 meses de agosto a julho, o Deter detectou 6.840 km2 de desmatamento, ante 4.571 km2 no período anterior (aumento de 50%). Já o Prodes registrou 9.762 km2 no período atual, versus 7.536 km2 no período anterior (aumento de 30%). Tipicamente, a variação final verificada pelo Prodes é da ordem de 40% a 50% menor do que a variação indicada pelo Deter — que foi justamente o que aconteceu.
“Como um sinalizador de tendências, podemos dizer que o Deter funcionou muito bem”, diz o coordenador do Programa de Monitoramento da Amazônia e Demais Biomas do Inpe, Claudio Almeida.
O que vem por aí
Essa primeira estimativa do Prodes, de 9,7 mil km2, é baseada na análise de 99 “cenas” (imagens de satélite de alta resolução, com 180×180 km de extensão), que correspondem às áreas com maior concentração de desmatamento indicadas pelo Deter e outros critérios de seleção. Com base nessa amostra de imagens, então, é feita uma estimativa para o resto do bioma.
Uma análise completa de todas as 229 cenas que compõem a Amazônia ainda será realizada nos próximos meses, para produzir uma estimativa definitiva para todo o bioma. Esse número final, tipicamente, tem uma variação da ordem de 4% em relação à estimativa original, para mais ou para menos. É esse dado, então, que fica registrado como a “taxa oficial” de desmatamento para aquele período.
A tendência para o próximo ano de monitoramento (2019-2020), por enquanto, é preocupante. O desmatamento acumulado detectado pelo Deter nos meses de agosto, setembro e outubro deste ano foi de 3.700 km2, comparado a 1.800 km2 no mesmo trimestre de 2018 — um aumento de mais de 100%.
“Acho que ainda vamos ver o rescaldo de tudo isso que está acontecendo”, diz a pesquisadora Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília.
Este artigo foi publicado originalmente no Jornal da USP, leia o original aqui.