Explicando Hong Kong: a história por trás dos protestos

Feliphe Silva
Foto: Vincent Yu

Foi no início do século XVI, em 1513, que o navegador português Jorge Álvares chegaria ao estuário do Rio das Pérolas para estabelecer na região um entreposto comercial. Esse foi o primeiro contato dos europeus com os chineses. Em 1520, os portugueses seriam dali expulsos pela Marinha Imperial Ming, recebendo depois uma concessão para assentarem-se em Macau (onde, ainda hoje, uma pequena parcela da população fala o idioma de origem lusitana). Essa foi a primeira experiência de conflito e acordo entre chineses e europeus; algo que viria a se repetir no futuro.

Em 1647, o príncipe regente Rui, da dinastia Qing, retoma a política de fechamento dos portos; algo que já havia sido praticado anteriormente, e que teve então como fim o combate à pirataria e o embargo aos japoneses. Em 1684, o Imperador Kangxi encerra a proibição, mas o sistema de comércio marítimo volta a sofrer restrições em 1757, durante o governo do seu neto, o Imperador Qianlong, quando se estabelece que todos os navios, desde que não hasteassem bandeira russa ou japonesa, poderiam ter acesso ao porto de Cantão (Guangzhou), localizado no delta do Rio das Pérolas, ao norte de Macau e ao noroeste de Hong Kong.

Foi através desse porto que chegou à China o ópio, comercializado ali por nações diversas, mas, sobretudo e em larga escala, pela Companhia Britânica das Índias Orientais. O psicotrópico extraído da papaver somniferum rapidamente caiu no gosto popular, espalhando-se pelo território chinês. Propostas foram levadas à corte, com a finalidade de legalizar e taxar o entorpecente, mas foram rejeitas pelo Imperador Daoguang. Este iniciou uma guerra contra a droga, que estaria destinada ao fracasso no âmbito da política interna e ao desastre na política externa. Em 1839, após mal sucedidas negociações, o Vice-Rei Lin Zexu ordenou um bloqueio naval e o confisco dos estoques de ópio (cerca de 1200 toneladas). O governo britânico enviou sua Marinha Real e impôs sucessivas derrotas aos chineses, que em 1842 assinaram o Tratado de Nanquim, no qual concordaram em pagar 21 milhões de dólares em indenizações e em ceder perpetuamente a ilha de Hong Kong, que se tornara então colônia do Reino Unido. Em 1860, os britânicos anexaram a península de Kowloon; e em 1898 – com uma China enfraquecida pela Primeira-Guerra Sino-Japonesa (1894-1895) – receberiam uma concessão de 99 anos para os chamados Novos Territórios – que, junto aos anteriormente mencionados, formam a atual Região Administrativa Especial da República Popular.

O atual status foi adquirido em 1997, quando os territórios foram devolvidos, porém, com a garantia de que Hong Kong teria autonomia política e econômica por 50 anosNesta data que vos escrevo, faltam 28 anos para que, de acordo com o tratado, a República Popular da China tenha direitos políticos sobre a área. E, a cada ano que passa, a tensão se intensifica.

Em 2014, o Congresso Nacional do Povo estabeleceu que os candidatos a Chefe do Executivo de Hong Kong deveriam obter a aprovação do Partido Comunista, antes de se submeterem ao voto popular. Manifestantes pró-democracia tomaram as ruas. Os primeiros protestos aconteceram junto à Marcha de 1º de Julho, um evento anual em prol dos direitos humanos, que neste ano atraiu talvez o maior número de pessoas na sua história, e acabou com a movimentação de 5 mil policiais, que efetuaram mais de 500 prisões. Mais protestos ocorreram a partir de Setembro, com mais pessoas e mais dura repressão. O último evento aconteceu em Dezembro, quando, após constantes combates com a polícia, o movimento arrefeceu. A ordem do legislativo se manteve.

As marchas pró-democracia, então, se repetem ano após ano. E em cada evento há repressão policial. As mais recentes começaram neste mês (09), dias depois dos 30 anos do Massacre na Praça da Paz Celestial (04 de Junho de 1989) – desta vez, contra uma lei de extradição. O governo da China alega que Hong Kong, por possuir sistema jurídico distinto do seu, acaba recebendo criminosos fugitivos, que ali se escondem. Os que são contrários à lei, dizem que ela pode servir de pretexto para a extradição de ativistas, que se tornariam presos políticos e estariam vulneráveis a um julgamento injusto e violações dos direitos humanos.

No dia 12, os manifestantes marcharam na direção do prédio do Conselho Legislativo e houve confronto violento. A Chefe do Executivo, Carrie Lam, pediu desculpas por causar “disputas na sociedade” e anunciou a suspensão do projeto por tempo indeterminado; mesmo assim, a população retornou às ruas no dia de ontem (16), ainda em maior número, demandando a completa extinção da lei e a renúncia da líder eleita indiretamente.

O atual método de sufrágio indireto deveria ser temporário, visto que o Art. 45 da Lei Básica de Hong Kong, adotada em 1990, estabelece como objetivo o sufrágio universal. Algo que, aparentemente, não está no horizonte.

Enquanto isso, talvez pela importância econômica e geopolítica da região, o governo da República Popular da China atua com certa paciência, sem uma intervenção mais radical, e, ao mesmo tempo, procura estender sua influência aos poucos, até a data estabelecida na Declaração Conjunta Sino-Britânica.

28 anos parece muito tempo, mas, de fato, muitos de nós, com fé em Oxalá, estaremos vivos para testemunhar os próximos acontecimentos dessa história. Eu, que ainda me apego a essa metafísica da religiosidade, só posso rezar por meus irmãos asiáticos, para que as próximas páginas dessa história não sejam escritas com sangue.

As opiniões expressas nesta publicação são do(a) autor(a) e podem não representar as de outros membros da SoCientífica.

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