O que era verdade e o que era mito sobre os médicos da peste

Adriana Tinoco

Você provavelmente já os viu em gravuras antes. Figuras misteriosas e um tanto assustadoras, vestidas da cabeça aos pés em couro oleado, usando óculos e máscaras de bico. Assim sendo, a vestimenta dos médicos da peste passou a representar os horrores da Peste Negra e a estranheza da medicina medieval. No entanto, o traje da máscara de bico apareceu somente cerca de três séculos após a Peste Negra, na década de 1340.

Por que os médicos da peste usavam máscaras de bico?

A primeira menção do famoso traje dos médicos da peste é encontrada em uma obra de meados do século XVII, escrita por Charles de Lorme. Ele era médico real no serviço do rei Luís XIII da França. Lorme escreveu que, durante um surto de peste em 1619 em Paris, desenvolveu uma roupa feita inteiramente de couro de cabra marroquino. A vestimenta incluía também calças, casaco longo, chapéu e luvas. Dessa maneira, o uso desse equipamento de proteção sugere que os médicos estavam mais preocupados em pegar a praga diretamente de seus pacientes, do que do próprio ar.

Mascara perfumada

A principal característica do traje de Lorme era uma máscara bem ajustada, completa com oculares de cristal. A máscara possuia um bico longo, com cerca de 15 cm de comprimento, cheio de perfume ou ervas aromáticas. Sendo assim, pensava-se que o bico era essencial impedir a inalação de “miasma pestilencial”, ou seja, ar contaminado que vinha diretamente do paciente.

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Após a descrição de Lorme do traje da peste, nossa melhor evidência visual vem do ano de 1656. Quando uma praga matou centenas de milhares de pessoas em Roma e Nápoles, o gravador alemão Gerhart Altzenbach publicou uma imagem popular de um médico da peste, em trajes completos, com um texto descrevendo como a roupa protegia o usuário contra a morte.

Caricatura se tornou célebre

Uma outra imagem do médico da peste ficou ainda mais famosa. A gravação satírica de Paulus Fürst, de 1656, chamada “Doutor Schnabel von Rom” ou “Doutor Beaky de Roma”, copiava a ilustração de Altzenbach. Contudo, Fürst descrevia como o médico não fazia nada além de aterrorizar as pessoas e receber dinheiro dos mortos e moribundos.

Fürst também adicionou alguns elementos extras à roupa dos médicos da peste que aparecem em muitas versões até hoje, como as luvas em forma de garra e o bastão com uma ampulheta com asas de morcego. Esses elementos são satíricos e não uma realidade histórica, mas ainda assim moldaram muito de como o médico estereotipado da peste é retratado hoje.

Doutor da peste em sátira
“Doutor Schnabel von Rom”, por Paulus Fürst

As gravuras de Altzenbach e Fürst também podem ter inspirado a inclusão do médico da peste como personagem padrão no teatro desde o século XVII. O traje, especialmente a máscara de bico, se tornou uma das fantasias mais populares do “Carnaval de Veneza, na Itália. De fato, alguns historiadores argumentaram que o médico da peste não era nada além de um personagem fictício e cômico, e que foi a versão teatral que inspirou médicos reais a usarem o traje, durante os surtos de 1656 e 1720.

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Dessa forma, sem relatórios e imagens escritos mais informativos desse período, que poderiam ajudar a entender em que circunstâncias a roupa foi usada, é impossível dizer o que veio primeiro: a roupa protetora do médico da peste ou a fantasia de carnaval.

Quem eram os médicos da peste?

Os médicos dos últimos períodos medievais e do início da modernidade não são representados por uma única roupa. As idéias sobre a causa e a propagação da praga mudaram ao longo de vários séculos, assim como as roupas dos médicos e os métodos usados ​​para tratar a doença. 

Esses médicos estavam trabalhando muito antes da teoria dos germes e antibióticos e não conseguiram curar pragas. No entanto, eles merecem mais crédito do que costumam receber. Afinal, reconheceram a propagação e os sintomas da praga, dando esperança em uma época de constante crise na saúde.

Teoria dos quatro humores corporais

Muitos médicos da peste escreveram pequenos livros, conhecidos como tratados da peste, para aconselhar seus colegas e o público a como se prevenirem. Logo após o surto da peste negra, médicos e cientistas tentaram explicar a doença. Tanto na Europa quanto no Oriente Médio, isso significava definir a praga em termos da teoria dos quatro humores corporais (sangue, catarro, bile amarela, bile negra). Essa teoria foi desenvolvida primeiro pelos antigos médicos Hipócrates e Galeno e mais explicada pelos médicos árabes e latinos na idade Média.

A praga em Leiden
Em “A praga em Leiden”, de 1574: um médico examina um frasco de urina, cercado por doentes, moribundos e mortos.

Usando teorias médicas antigas e medievais, os médicos da peste argumentaram que a Peste Negra era uma febre pestilencial que corrompeu os humores. Essa febre causava horríveis bolhas de peste ou linfonodos inchados de sangue e pus. Os médicos da peste reconheceram que os bolhas tendiam a se formar na virilha, nas axilas e no pescoço. Dessa forma, viam isso como evidência do corpo expulsando humores dos órgãos principais mais próximos: fígado, coração e cérebro, respectivamente.

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Segundo esses médicos, a peste poderia ser evitada através do fortalecimento dos humores. Isso se daria através de um plano médico detalhado, em outras palavras, mudanças na dieta, uso de medicamentos que causam vômito e micção “benéficos”, além de sangria profilática. Todos esses procedimentos visavam expulsar os humores corrompidos do corpo, impedindo que a bílis negra dominasse o corpo. Essa bílis era considerada na época a mais perigosa dos humores.

Medicina e astrologia

Uma das teorias mais populares foi descrita detalhadamente pela faculdade de medicina da Universidade de Paris. Em 1348, o rei da França pediu conselhos aos professores quando a praga se aproximou da capital real. Assim sendo, estes combinaram medicina e astrologia, que era considerada uma ciência séria na época, para explicar a causa e a propagação da praga.

Em 1345, o ar da Terra, segundo os professores, foi superaquecido e corrompido por uma conjunção dos planetas Marte, Saturno e Júpiter (todos considerados quentes, violentos ou corruptos em sua influência astrológica) no signo do zodíaco de Aquário.  Esse ar artificialmente quente e úmido soprava pela Ásia em direção à Europa, causando pragas por onde passava. Quando os médicos medievais se referiam a uma pestilência, geralmente não significava a doença em si, mas o ar envenenado que engendrava a doença no corpo humano.

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Para proteger as pessoas do ar pestilento, os médicos incentivavam o uso de substâncias doces ou amargas. Entre elas: violetas, absinto, vinagre ou um pedaço de âmbar cinzento. Este último era exclusividade dos muito ricos e consistia da secreção fortemente perfumada do intestino de uma baleia. Além disso, os médicos também sugeriram a queima de incenso ou madeiras com cheiro amargo para purgar e purificar o ar. Desde o final da Idade Média, os médicos também recomendaram disparar canhões para combater o miasma com a fumaça da pólvora.

Prevenção de doenças

Embora o traje da máscara do bico tenham se tornado um símbolo teatral e macabro dos primórdios da medicina, na verdade, ele demonstra como, há séculos, médicos e cientistas pensam sobre a propagação e a prevenção de doenças. Sendo assim, o traje representa a mudança de idéias sobre as causas e transmissão da doença; sobre o relacionamento entre médicos e pacientes e também sobre o papel do Estado na proteção da saúde pública.

FONTE / Live Science

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