Por milhares de anos as pessoas acreditaram que as aves hibernavam durante o inverno, até que uma cegonha apunhalada provou que algo diferente ocorria: a migração de aves.
As aves são conhecidas, pelo menos hoje, por diversas características, uma das mais notáveis sendo os seus processos migratórios, que podem ser surpreendentes.
A andorinha do ártico, por exemplo, viaja do ártico até a região antártica todo ano, e sabe bem para onde está indo, frequentemente chegando ao mesmo lugar onde nasceu ou se reproduziu da última vez que esteve ali.
Para alguns, a chegada ou partida de aves, como cegonhas, além de ser uma bela visão aos olhos, é também o indicativo do início do verão – e sua ida o indício de que o inverno está próximo. Todavia, observar esses processos tem se tornado algo menos comum, uma vez que a espécie humana ocupa cada vez mais os habitats naturais dessas criaturas.
Hoje em dia, entendemos porque algumas aves “desaparecem” em certas épocas do ano, ainda que nem sempre saibamos como eles executam suas jornadas, ou até mesmo o motivo.
Mas esse nem sempre foi o caso.
O entendimento sobre a migração de aves em outras épocas
No passado, as pessoas percebiam que certos tipos de aves apareciam e desapareciam em certas épocas do ano, e há referências sobre migrações de aves de escritores da Grécia Antiga, como Hesíodo e Heródoto, assim como no Velho Testamento.
O filósofo Aristóteles descreve cerca de 140 aves em seu livro de dez volumes Historia Animalum, registrando como algumas aves pareciam mais robustas quando estavam prestes à migrar, e consideravelmente mais magras quando retornavam.
Ele foi capaz de observar que o guindaste eurasiano (um tipo de ave) migrava das estepes da Cítia até os pântanos do Nilo, observações que ele provavelmente conseguia validar através de viajantes que circulavam pela região. Todavia, não era possível identificar os hábitos das aves que viajavam para além do mundo conhecido.
Se Aristóteles não conseguia obter dados, ele recorria a outros meios. O filósofo apontou que aves migratórias como as cegonhas, assim como pequenos répteis e mamíferos, simplesmente hibernavam no inverno. Outros sugeriram que elas se transformavam em outro tipo de ave, que fosse mais adaptável ao tempo adverso.
A teoria das cegonhas hibernantes de Aristóteles foi aceita por dois milênios, declarada inclusive como fato pelo Arcebispo de Uppsala no século XVI.
Até mesmo um naturalista renomado de Selborne, Gilbert White, reportou que as cegonhas, chegando cedo à Inglaterra e encontrando gelo e neve, “imediatamente se retirariam por um tempo – uma circunstância muito mais a favor de ocultação do que migração”, duvidando que elas se dariam ao trabalho de viajar de novo para latitudes mais quentes.
Mas a teoria de Aristóteles não era tão bizarra assim, quando comparada a outras: um professor de Harvard, em 1703, escreveu num panfleto que aves migratórias voavam para a Lua.
A resolução do mistério
Thomas Bewick foi mais além no mistério da cegonha que desaparecia repentinamente, registrando no primeiro volume do A History of British Birds, publicado em 1796, sobre a embarcação de um capitão cuja opinião ele estimava, de onde era possível ver grandes números de cegonhas viajando para o norte entre as ilhas de Menorca e Mallorca.
Assim, a teoria de que as cegonhas hibernavam no fundo d’água depois de chegarem, tida como certa por alguns, não se sustentava mais.
Bewick até fez experimentos com cegonhas, mantendo-as aquecidas, secas e alimentadas durante os meses de inverno, o que o levou a concluir que “elas nos deixam quando esse país não pode mais fornecê-las com o suprimento da sua comida apropriada e natural”.
Mas ainda faltavam dados substanciais para explicar e comprovar o processo de migração de aves.
A prova veio dos céus, em 1822. Uma cegonha-branca (Ciconia ciconia), foi encontrada nos arredores do vilarejo de Klütz, na costa báltica da Alemanha moderna. A ave tinha uma lança atravessada no seu corpo.
Após inspeção, foi descoberto que a lança era feita de madeira africana, levando à conclusão inequívoca que, mesmo com o ferimento, a cegonha conseguiu viajar mais de 3000 km do continente africano, do qual migrara.
A ave foi morta e colocada em exibição, junta à lança, onde continua até hoje na Coleção Zoológica da Universidade de Rostock.
Surpreendentemente, mais vinte e quatro aves do tipo foram encontradas na época, comprovando que que as aves de fato migravam, e que não hibernavam ou se transformavam em outra coisa. Os cientistas agora podiam entender e estudar melhor o mistério sobre a migração de aves, graças à cegonha apunhalada.