Evidências da “partícula anjo” — a partícula que é sua própria antipartícula

Diógenes Henrique
Imagem meramente ilustrativa.

Toda partícula fundamental no universo possui uma antipartícula, que tem a mesma massa, mas a carga oposta. Se uma partícula encontrar sua antipartícula, as duas se aniquilariam em um flash de energia. Mas há muito tempo foi teorizado que há uma exceção à regra, com certas partículas que são realmente as suas próprias antipartículas.

Agora, cientistas da Universidade de Stanford e da Universidade da Califórnia (UC) encontraram a primeira evidência forte para esse tipo de partícula, a que eles apelidaram de “partícula anjo”. A equipe de cientistas de Stanford e da UC diz que encontrou a primeira evidência firme do tal férmion de Majorana. Foi descoberto em uma série de experiências de laboratório sobre materiais exóticos na Universidade da Califórnia (UC), em colaboração com a Universidade de Stanford. A equipe foi liderada pelo Professor Associado da UC-Irvaine Jing Xia e pelo Professor Kang Wang da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), e seguiu um plano proposto por Shoucheng Zhang, professor de física em Stanford, e colegas. A equipe relatou os resultados em um artigo publicado na Science.

A teoria remonta a 1937, quando o físico italiano Ettore Majorana destacou uma lacuna na família de partículas do férmion. Prótons, elétrons, nêutrons, neutrinos e quarks são todos férmions, e todos têm correspondentes antipartículas, mas de acordo com os cálculos de Majorana, deve haver partículas que sejam suas próprias antipartículas, que ficaram conhecidos como férmios de Majorana.

Como eles não têm carga, nêutrons e neutrinos foram os melhores candidatos para serem estes férmions de Majorana, mas os antinêutrons foram descobertos. Ainda há um grande ponto de interrogação sobre os neutrinos, e experimentos estão atualmente em andamento para determinar se eles são na verdade sua própria antipartícula. No entanto, a dificuldade dos experimentos implica que uma resposta ainda está a mais de uma década distante de nós.

Enquanto isso, a maneira mais provável de encontrar férmions de Majorana é procurar por “quase-partículas”. Como o nome sugere, estas não são partículas muito naturais, mas surgem do comportamento coletivo dos elétrons e possuem certas propriedades das partículas. Se isso é difícil de visualizar, a Encyclopaedia Britannica explica o conceito como bolhas em uma bebida: bolhas também surgem do “comportamento coletivo” dos produtos químicos na bebida e, embora não sejam objetos realmente independentes, as bolhas possuem propriedades mensuráveis como os objetos reais, incluindo tamanho, forma, etc.

Da mesma forma, as quase-partículas podem não ocorrer fora de condições muito específicas, mas podem ser consideradas férmions de Majorana se exibirem todas as propriedades corretas. Agora, pesquisadores de Stanford e da Uinversidade da Califórnia disseram que encontraram uma “assinatura indesmentível” (ou “prova indesmentível” ou “smoking gun”, a expressão que tem aparecido com frequência nos media sobre a descoberta) que aponta para a presença desses férmions hipotéticos.

“Nossa equipe previu exatamente onde encontrar o férmion de Majorana e o que procurar como sua assinatura experimental de ‘prova indesmentível’”, diz Shoucheng Zhang, um dos principais autores do trabalho de pesquisa. “Esta descoberta conclui uma das pesquisas mais intensivas em física fundamental, que durou exatamente 80 anos”.

Para que essas quasipartículas peculiares se mostrem, a equipe construiu cuidadosamente sua “bebida” muito específica (como nas condições do líquido que produzem as bolhas), composta de filmes finos de dois materiais quânticos empilhados um no outro. O resultado final é um isolador topológico supercondutor, que permite que os elétrons se movam rapidamente ao longo das bordas da superfície do material, mas não pelo meio. Adicionando uma pitada de material magnético na mistura, os elétrons fluem em uma direção ao longo de uma borda, e na direção oposta ao longo da outra.

Os pesquisadores então distribuíram um ímã sobre o material, o que fez com que todos os elétrons diminuíssem, parassem e alternassem a direção. A inversão aconteceu em um movimento brusco e escalonado que a equipe compara com os degraus em uma escada. As quasiparticulas começaram a emergir do material em pares, viajando pelo mesmo caminho que os elétrons, mas houve uma diferença fundamental: quando eles pararam e se inverteram o movimento, eles fizeram isso em “degraus” exatamente na metade dos elétrons. Isso porque cada um é essencialmente apenas metade de uma partícula, uma vez que um de cada par de quase partículas é perdido ao longo do caminho. E esse fenômeno era exatamente a evidência que os pesquisadores estavam procurando.

Zhang sugeriu que a descoberta da equipe seja chamada de “partícula anjo” em referência ao romance de Dan Brown, Anjos e Demônios, que apresenta uma bomba movida pelo encontro de matéria e antimatéria. A longo prazo, os férmions de Majoranas poderiam encontrar uma aplicação prática para tornar os computadores quânticos mais seguros.

A pesquisa

Em 1928, o físico Paul Dirac fez a previsão deslumbrante de que todas as partículas fundamentais do universo possuem uma antipartícula — isto é, uma partícula gêmea idêntica, mas com carga oposta (as cargas elétricas de partículas e antipartículas e seus momentos angulares têm os mesmos valores absolutos que suas correspondentes simétricas, no entanto, os campos eletromagnéticos são de sinais contrários).

Quando a partícula e a antipartícula se encontraram, são aniquiladas, liberando uma quantidade de energia. Alguns anos depois, a primeira partícula de antimatéria — o oposto do elétron, o pósitron — foi descoberta, e a antimatéria tornou-se rapidamente parte da cultura popular.

Matéria + Antimatéria = Energia. Ao colidir uma partícula de matéria com a sua antimatéria ambas se transformam em energia pura, proporcional à massa consumida, gerando energia segundo E=mc².
Matéria + Antimatéria = Energia. Ao colidir uma partícula de matéria com a sua antimatéria ambas se transformam em energia pura, proporcional à massa consumida, gerando energia segundo E=mc².

Mas em 1937, o brilhante físico, Ettore Majorana, introduziu uma reviravolta: ele previu que na classe de partículas conhecidas como férmions, que inclui o próton, o nêutron, o elétron, o neutrino e o quark, deveria haver partículas que são suas próprias antipartículas.

“Nossa equipe previu exatamente onde encontrar o férmion de Majorana e o que procurar como sua assinatura experimental de “assinatura indesmentível”, disse Zhang, um físico teórico e um dos principais autores do trabalho de pesquisa. “Esta descoberta conclui uma das pesquisas mais intensivas em física fundamental, que durou exatamente 80 anos”.

Embora a busca do famoso férmion pareça ser mais intelectual do que prática, ele acrescentou, ela poderá ter implicações na vida real, na construção de computadores quânticos robustos, embora este seja reconhecidamente muito no futuro.

O tipo particular de férmion de Majorana, a equipe de pesquisa observada, é conhecido como um férmion “quiral” porque se move ao longo de um caminho unidimensional em apenas uma direção. Ainda que as experiências que o produziram foram extremamente difíceis de conceber, configurar e realizar, a evidência que elas produziram era clara e sem ambiguidade, disseram os pesquisadores.

“Esta pesquisa culmina uma perseguição de muitos anos para encontrar os férmions quirais de Majorana. Ela será um marco nesta área”, disse Tom Devereaux, diretor do Stanford Institute for Materials and Energy Sciences (SIMES) no SLAC National Accelerator Laboratory, onde Zhang é investigador principal.

“Parece ser realmente uma observação clara de um algo novo”, disse Frank Wilczek, físico teórico e prêmio Nobel do Massachusetts Institute of Technology (MIT), que não esteve envolvido no estudo. “Não é fundamentalmente surpreendente, porque os físicos pensaram há muito tempo que os férmions de Majorana poderiam surgir dos tipos de materiais utilizados nesta experiência. Mas eles reuniram vários elementos que nunca foram reunidos antes e também a engenharia por trás, é um marco real que permitiram, então, que esse novo tipo de partícula quântica pode ser observada de forma clara e robusta”.

Buscando “quasiparticulas”

A previsão de Majorana se aplicava apenas a férmions que não tinham carga, como o nêutron e o neutrino. Os cientistas já encontraram uma antipartícula para o nêutron, mas eles têm boas razões para acreditar que o neutrino pode ser sua própria antipartícula, e há quatro experimentos em andamento para descobrir — envolvendo o EXO-200, a última geração do Enriched Xenon Observatory (EXO), um Observatório de Xenônio Enriquecido que fica no Novo México. Mas essas experiências são extraordinariamente difíceis e não se espera que produzam uma resposta por menos de cerca de uma década.

Cerca de dez anos atrás, os cientistas perceberam que os fermiões de Majorana também podem ser criados em experimentos que exploram a física dos materiais — e a corrida teve início para que isso acontecesse.

O que eles procuraram são “quasipartículas” — excitantes semelhantes a partículas que surgem do comportamento coletivo de elétrons em materiais supercondutores, que conduzem eletricidade com 100 por cento de eficiência (leia aqui o artigo da Ciência Hoje sobre quasipartículas). O processo que dá origem a essas quase-partículas é semelhante ao modo como a energia se transforma, no vácuo do espaço, em partículas “virtuais” de curta duração e volta à energia novamente, de acordo com a famosa equação de Einstein E = mc². Embora as quase-partículas não sejam como as partículas encontradas na natureza, elas poderiam, no entanto, ser consideradas férmions reais de Majorana.

Ao longo dos últimos cinco anos, os cientistas tiveram algum sucesso com essa abordagem, relatando que eles tinham visto assinaturas promissoras do férmion de Majorana em experimentos envolvendo nanofios supercondutores.

Mas, nesses casos, as quase-partículas eram “confinadas” — presas a um lugar particular, em vez de se propagar no espaço e no tempo — e era difícil dizer se outros efeitos estavam contribuindo para os sinais que os pesquisadores viram, segundo Zhang.

Smoking gun – a prova quente

Nos últimos experimentos na UCLA e UC-Irvine, seguindo o plano proposto pelos pesquisadores da Universidade de Stanford, a equipe empilhou filmes finos de dois materiais quânticos — um supercondutor e um isolador topológico magnético — e fizeram passar uma corrente elétrica através deles, tudo dentro de uma câmara de vácuo gelada.

O filme superior era o supercondutor. O inferior era o isolador topológico, que atua somente ao longo de sua superfície ou bordas, mas não através do meio. Ao colocá-los juntos, criou-se um isolador topológico supercondutor, onde os elétrons deslizam ao longo de duas bordas da superfície do material sem resistência, como carros em uma super-rodovia.

Foi a ideia de Zhang ajustar o isolador topológico, adicionando uma pequena quantidade de material magnético a ele. Isso fez com que os elétrons fluíssem de um lado ao longo de uma borda da superfície e na direção oposta ao longo da outra borda.

Então os pesquisadores passaram um ímã sobre a pilha. Isso fez com que o fluxo de elétrons diminuísse, parasse e mudasse de direção. Essas mudanças não foram suaves, mas ocorreram em passos abruptos, como “degraus idênticos em uma escada”.

Em certos pontos nesse ciclo, as quasipartículas de Majorana emergiram, surgindo aos pares da camada supercondutora e viajando ao longo das bordas do isolador topológico exatamente como os elétrons fizeram. Um membro de cada par foi desviado do caminho, permitindo que os pesquisadores facilmente medissem o fluxo das quasipartículas individuais que continuaram a viagem. Como os elétrons, eles diminuíram, pararam e mudaram de direção — mas em “degraus” de altura exatamente a metade dos “degraus” que os elétrons apresentaram.

Esses “degraus pela metade” eram as provas quentes (ou “prova indesmentível” ou “smoking gun”) que os pesquisadores estavam procurando.

Os resultados dessa pesquisa não são susceptíveis de ter algum efeito nos esforços para determinar se o neutrino é a sua própria antipartícula, disse o professor da Física da Universidade de Stanford, Giorgio Gratta, que desempenhou um papel importante na concepção e no planejamento do observatório EXO-200.

“As quasipartículas que eles observaram são essencialmente excitações em um material que se comporta como partículas de Majorana”, disse Gratta. “Mas elas não são partículas elementares e são feitas de forma muito artificial em um material especialmente preparado. É muito improvável que elas ocorram no universo, embora quem somos nós para dizer? Por outro lado, os neutrinos estão em todos os lugares, e se eles são partículas de Majorana, mostraríamos que a natureza não só possibilitou esse tipo de partículas, mas, de fato, literalmente encheu o universo deles”.

Ele acrescentou: “Onde fica mais interessante é que as analogias na física se mostraram muito poderosas. E mesmo que sejam feras muito diferentes, processos diferentes, talvez possamos usar um para entender o outro. Talvez possamos descobrir algo que é interessante para nós também”.

Partícula anjo

No futuro, disse Zhang, os férmions de Majorana poderiam ser usados para construir computadores quânticos robustos que não são interrompidos pelo “ruído” ambiental (interferências ambientais), o que tem sido um grande obstáculo para o desenvolvimento desses equipamentos. Uma vez que cada Majorana é essencialmente metade de uma partícula subatômica, um único qubit de informação poderia ser armazenado em dois férmions de Majorana completamente separados, diminuindo a chance de que algo pudesse perturbá-los de uma só vez e fazê-los perder a informação que eles carregam.

Por enquanto, ele sugere um nome para o férmion quiral de Majorana, que sua equipe descobriu: a “partícula de anjo”, em referência a mais vendida obra de suspense dos anos 2000: “Anjos e Demônios” de Dan Brown. No romance, uma fraternidade secreta planeja explodir o Vaticano com uma bomba relógio, cujo poder explosivo vem da aniquilação de matéria e antimatéria. Ao contrário do livro, ele observou, no mundo quântico do férmion de Majorana há apenas anjos — sem demônios.

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