À questão “o que é o esclarecimento? ”, Kant responde com um breve texto publicado em 1783 na revista Berlinische Monatsschrift. De modo bastante objetivo, Kant inicia o primeiro parágrafo do seu ensaio já com uma definição para Aufklätrung, a saber, “Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele é o próprio culpado”. No entanto, esta definição inicial parece apenas substituir um problema com outro, ou seja: esclarecimento é não-menoridade; sim, mas antes de saber o que não é, não seria o caso de procurar entender o que se quer dizer com “menoridade” e por que a permanência em seus limites implica culpa?
Na frase seguinte o filósofo avança um pouco mais e nos apresenta a seguinte formulação: “A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo”. Em outras palavras, esclarecimento seria a capacidade de o homem fazer uso de seu entendimento sem uma direção externa e a menoridade – de onde o entendimento almeja escapar – implicaria uma situação de culpa porque supõe uma espécie de demissão desta capacidade, isto é, o entendimento é abandonado em função da falta de decisão ou de coragem de não se sujeitar à direção de outrem. Por esta razão Kant lança mão do lema latino Sapere aude! e propõe o esclarecimento (Aufklätrung) como o atrevimento de saber, uma vez que fazer uso do próprio entendimento significa tomar uma decisão em certa medida ousada ou incomum, pois a maior parte dos homens não emerge da menoridade, porque é mais cômodo seguir a orientação e o pensamento dos tutores.
Pode-se dizer que Kant parte da noção de que o controle social constrói uma estrutura de tutela em torno do indivíduo na perspectiva de supervisionar seu pensamento a respeito das coisas, mas de maneira a que esse controle não assuma um aspecto visível e marcante. Sabemos que onde há regras, há controle. E nesta situação, por assim dizer, de um controle naturalizado, um livro, como afirma Kant, pode fazer as vezes do entendimento do indivíduo, um líder espiritual pode deliberar por ele, um método determinará qual a melhor dieta a ser feita, sem que ele precise se preocupar com tais coisas. Ou seja, uma variedade de tutores se encarregará no lugar deste indivíduo dos negócios e decisões, sejam desagradáveis ou não. Esta situação se assemelha tão cômoda para o homem em particular que o filósofo chega a afirmar que é difícil desvencilhar-se da condição (metafórica e/ou psicológica) da menoridade, porque ela se fixa no indivíduo quase como uma natureza.
O indivíduo, ao invés de proceder a uma investigação por si mesmo dos conceitos de que dispõe para interpretar o mundo e, ao mesmo tempo, por não estar habituado, segundo Kant, “a este movimento livre”, apenas reproduz preceitos e fórmulas, “estes instrumentos mecânicos do uso racional”, emprestados dos seus tutores. Com relação aos tutores da grande massa, Kant admite que até entre eles não é impossível encontrar alguns indivíduos capazes de pensamento próprio. E eles, por sua vez, podem espalhar ao redor de si, como afirma o filósofo, “o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo”. Kant parece acreditar que tal situação estabelece um ponto sem volta, isto é, a condição anterior, da menoridade administrada através do medo pelos tutores, provoca no público que se esclarece um movimento de vingança daqueles que foram os responsáveis pelos seus preconceitos. Mas Kant entende que uma revolução levada a efeito pelos que se rebelam contra os seus tutores, “a grande massa destituída de pensamento”, ainda não é um pleno esclarecimento.
A queda pura e simples do despotismo ou de qualquer outra forma de opressão não produzirá, de acordo com Kant, “a verdadeira reforma no modo de pensar”. Neste momento, Kant afirma que o processo de esclarecimento (Aufklätrung) não exige senão liberdade. E um tipo de liberdade que ele define – talvez ironicamente – como a mais “inofensiva”, a saber, a liberdade “de fazer um uso público de sua razão em todas as questões”. Identifico certa ironia nesta aposta na inofensividade porque Kant apresenta o esclarecimento, bem no início de seu ensaio, como uma espécie de ousadia: a ousadia de saber, de alcançar a maioridade; e nisto não parece haver nada de passivo ou de inofensivo, além do mais, ele sustenta que o indivíduo tem que fazer uso dessa liberdade de pensar por si, não em algumas, mas “em todas as questões”, e tal afirmação me parece forte. Aliás, o filósofo explica que o uso público da razão deve ser livre sempre e só ele pode realizar o esclarecimento. Isto é, este uso público da razão não pode ser delegado a outrem. Mas Kant introduz um segundo modo de fazer uso desta liberdade aparentemente inofensiva. Além de um uso público, há um uso privado da razão.
Kant os distingue assim: o uso privado da razão (em todas as questões), embora seja estreitamente limitado, colabora no progresso do esclarecimento; o professor e sua específica e também privada audiência de alunos serve como exemplo deste indivíduo que faz uso privado da razão. Já quanto ao uso público da razão (em todas as questões), Kant situa sob este nome aquele homem (ou mulher), enquanto sábio (intelectual, político, estadista) que, servindo-se de sua razão, faz uso dela diante do grande público. Ao mesmo tempo, cumpre observar que Kant aceita a necessidade de um certo controle no uso que fazemos de nossa razão. Ele entende que em alguns casos é mais prudente obedecer do que raciocinar. No âmbito das relações políticas, da comunidade e da sociedade constituídas pelos cidadãos, Kant vislumbra uma dinâmica na qual o indivíduo (membro de um grupo), no uso público da razão, responde apropriadamente às circunstâncias, ou seja, de posse de sua maioridade ele pode pensar por si mesmo “sem que por isso sofram os negócios a que ele está sujeito em parte como membro passivo”. Sirva de exemplo o caso de um militar que resolvesse desobedecer à ordem de um superior raciocinando em voz alta, à vista do público em geral, sobre a justeza daquela ordem.
Por outro lado, ninguém pode impedi-lo, já que tem conhecimento sobre o assunto, de fazer observações e apresentar as razões de sua discordância a um público privado.
Kant parece admitir que o processo de esclarecimento envolve uma disposição conciliatória. Com efeito, pode-se dizer, junto com Kant, que não vivemos em uma época esclarecida, mas em uma época, em certa medida, de precário esclarecimento, em um processo dinâmico em que visamos nos manter na maioridade, isto é, longe da menoridade. Assim, Kant admite que, em um Estado mais ou menos sadio, o legislador veja com bons olhos que seus cidadãos façam uso público de sua própria razão, expondo publicamente seus pensamentos sobre quaisquer questões, já que esta crítica corajosa ao estado de coisas existente é essencial ao processo de esclarecimento. Por outro lado, o Estado, sob pena de não legislar (teoricamente) para todos, se mostra sempre vigilante com relação ao maior grau de liberdade civil relativo a outros indivíduos. Apesar deste paradoxo, assinalado por Kant, o público leva em sua natureza o germe do esclarecimento, pois ao provar o gosto da liberdade civil a tendência (ou a vocação) é a de permanecer no uso do pensamento livre.
Para Kant este pensamento livre, não obstante episódios de tutelas se apresentem no percurso, “atua em retorno progressivamente sobre o modo de sentir do povo (com o que este se torna capaz cada vez mais de agir de acordo com a liberdade)” e, de outra parte, acaba por afetar também os princípios do governo, pois diante deste quadro o homem, segundo a conclusão otimista de Immanuel Kant, passa a ser tratado de acordo com a sua dignidade.