Pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e da Universidade Regional do Cariri (Urca) publicaram, em março deste ano (2021), artigo na revista Scientific Reports, do Grupo Nature, que aponta a mortalidade em massa de larvas de um inseto aquático, registrada na unidade geológica Formação Crato, no Ceará, entre 113 e 125 milhões de anos atrás, durante o período geológico Cretáceo Inferior. Segundo os estudiosos, embora a região seja rica em fósseis, “encontrar acumulações de 40 indivíduos da mesma espécie é muito raro, daí a relevância da descoberta”.
A publicação científica “Mass mortality events of autochthonous faunas in a Lower Cretaceous Gondwanan Lagerstätte” sugere que os insetos sofreram mortalidade em massa após um estresse climático severo, como calor intenso e evaporação do espelho d’água em que viviam, por exemplo, por ser muito raso, aumentando a salinidade do local. A partir de estudo mais detalhado desses fósseis também foi possível deduzir quais as condições ambientais da época em que os animais viveram no paleolago que existia no local. Produzido por Arianny Storari (Ufes), Taissa Rodrigues (Ufes), Renan Bantim (Urca), Flaviana Lima (UFPE) e Antônio Álamo Saraiva (Urca), o artigo apresenta a primeira análise tafonômica de uma mortalidade em massa de insetos da Formação Crato, ou seja, conta a história dos eventos que ocorreram antes da fossilização dos organismos neste sítio paleontológico.
Esse trabalho só pôde ser realizado graças à primeira escavação paleontológica controlada da Formação Crato, realizada pela equipe do Laboratório de Paleontologia da Urca e que durou mais de um ano para ser feita, camada por camada, por uma grande equipe de professores e estudantes. A ideia da escavação surgiu a partir do trabalho de doutorado da professora Flaviana Lima, do Núcleo de Biologia do Centro Acadêmico de Vitória, que foi desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Geociências (Paleontologia – Paleobotânica) da UFPE, de 2013 a 2017. Durante a pesquisa, Lima analisou fósseis de plantas coletadas nas áreas de exploração do calcário laminado. Na escavação que resultou no artigo da mortalidade em massa das efêmeras, a equipe de pesquisadores e professores fizeram a retirada das camadas de calcário em níveis centimétricos, coletando as informações de cada nível de rochas.
Raridade
O inédito achado provém de uma camada de calcário laminado, localmente chamada de Pedra Cariri, e as larvas de insetos encontradas pertencem ao grupo Ephemeroptera, conhecidas popularmente como efêmeras. “É comum serem encontrados pequenos acúmulos de mais de três insetos próximos na mesma camada de rochas nessa localidade, por ser muito rica em fósseis, mas acumulações de 40 insetos como as que foram encontradas agora são muito raras no registro fóssil”, reforça o estudo, que explica: “embora acúmulos de efêmeras tenham sido relatados anteriormente na Formação Crato, eles careciam de dados estratigráficos cruciais”.
Essa primeira análise tafonômica do registro observou uma camada de 285 cm do topo da Formação, com 40 larvas, e uma visão geral da estrutura da comunidade biológica de um perfil escavado de três metros de profundidade. A única outra espécie autóctone (vivente do local) observada na camada de mortalidade da efêmera foi o peixe gonorynchiforme Dastilbe. As larvas e peixes eram menores do que o normal no local, sugerindo que viviam em uma coluna de água rasa e mais: “sua excelente preservação e falta de orientação preferencial nas amostras sugerem ausência de transporte significativo”. Ainda segundo o estudo, todas as efêmeras pertencem à família Hexagenitidae, cujas larvas viviam em águas calmas. Os pesquisadores também recuperaram organismos alóctones (vivente de outro local) nessa camada, indicativos de condições climáticas mais secas.
Clima
Além dos fósseis, cristais de halita, mineral que se forma pela precipitação de sal, também foram encontrados em camadas próximas ao nível de mortalidade, sugerindo que ocorreu seca e alta salinidade em dado momento. “Os resultados apoiam a hipótese de que o paleolago da Formação Crato provavelmente experimentou alta evaporação sazonal, causada pelo clima quente com tendência à aridez, afetando as poucas faunas autóctones que conseguiam viver neste ambiente”, analisa o estudo. De acordo com os pesquisadores, as larvas poderiam ter morrido pelo aumento da salinidade, devido à diminuição do espelho d’água, pois as efêmeras geralmente não toleram altas concentrações de sal. Por conta disso, o aumento da salinidade pode ter sido o causador da mortalidade em massa dos insetos, mas não necessariamente dos peixes, que foram encontrados em diversos eventos de mortalidade, em camadas distintas.
Segundo Flaviana Lima, a partir da primeira escavação paleontológica com a metodologia adequada para a Formação Crato foi possível observar que havia um padrão de preservação dos fósseis nos diferentes níveis analisados; no caso dos insetos, esta é a primeira análise tafonômica que confirma a ocorrência de uma mortalidade em massa do grupo e, o mais interessante, é que esses organismos possuíam um tamanho menor do que o esperado. Considerando que as espécies viventes de efêmeras não toleram concentrações elevadas de sal, e que foi registrada a presença de cristais de halita na mesma camada da mortalidade, o que indica a redução do espelho d’água por evaporação, os pesquisadores concluíram que a causa mais provável da mortandade teria sido um estresse climático naquele intervalo de tempo geológico. “Assim, como nos dias de hoje, os insetos aquáticos são ótimos bioindicadores de qualidade de água, eles também conseguem nos ajudar a entender o ambiente pretérito, já que são sensíveis às variações do meio onde vivem”, complementa Arianny Storari, da Ufes.
A partir da pesquisa sobre eventos ambientais passados e como eles afetaram a fauna e flora daquela época, os pesquisadores podem interpretar tendências recentes e até futuras. Para Flaviana, “como os fósseis de efêmeras da família Hexagenitidae e os peixes Dastilbe representam uma fauna que viveu no paleolago da Formação Crato, os dados deles podem ser usados para entender melhor o contexto paleoambiental desta unidade”. O ambiente que deu origem à Formação Crato era composto por um ou vários paleolagos de profundidade variável ao longo de milhares de anos. Logo, as mudanças ambientais da época refletiam diretamente na deposição dessas camadas. “O que precisamos entender melhor, e esse é objetivo central do projeto que desenvolvemos, é como essas mudanças afetaram a fauna e a flora que existia e a distribuição dos diferentes grupos de organismos ao longo dessas camadas”, destaca.
E sobre como a Paleontologia pode interpretar tendências futuras, já que temos a ideia de que essa ciência está sempre tratando apenas do passado, Flaviana Lima explana: “Embora pareça contraditório, a Paleontologia também versa sobre o futuro do nosso planeta – estudar o passado para projetar o futuro. Por exemplo, quando os fósseis são utilizados para testar a previsibilidade de modelos climáticos, particularmente relacionados ao aquecimento global. Além disso, o registro paleontológico nos mostra que as extinções e mudanças climáticas ocorreram em vários momentos ao longo da história da Terra. Portanto, podemos interpretar que a crise ambiental atual é apenas mais um dos inúmeros episódios de instabilidade do mundo, porém, por outro lado, também nos mostra que a interferência humana tem afetado as biotas atuais e mudado os ciclos ambientais numa velocidade muito maior do que em qualquer momento do passado do nosso planeta”.
A formação do Crato
Entre 113 e 125 milhões de anos atrás, durante o Cretáceo Inferior, a África e América do Sul ainda estavam unidas, formando um único continente conhecido como Gondwana. Mas os blocos de terra já começavam a se separar, formando um oceano estreito e raso. À beira deste oceano, havia um ambiente composto por lagoas com vida animal e vegetal diversificadas. Este ambiente se preservou como uma unidade fossilífera que conhecemos hoje como Formação Crato, localizada na região da Chapada do Araripe, no sul do Estado do Ceará.