Em 15 de janeiro de 2020, quando cientistas, oficiais da marinha e políticos brasileiros celebraram a inauguração da nova Estação Antártica Comandante Ferraz na Antártica, foi como encerrar um doloroso capítulo da história do Brasil no continente.
Quase 8 anos antes, em fevereiro de 2012, a instalação de pesquisa foi destruída por um incêndio que ceifou a vida de dois tenentes da marinha, Carlos Alberto Figueiredo e Roberto dos Santos. Localizada na Baía do Almirantado na Ilha King George, a instalação estava em funcionamento desde 1984 e abrigava pesquisadores que trabalhavam com o PROANTAR (Programa Antártico Brasileiro). Apanhado de surpresa pelo incêndio, o país recebeu a notícia com choque.
No ano seguinte, o Instituto dos Arquitetos do Brasil e a Marinha do Brasil organizaram um concurso para escolher o projeto do prédio que substituiria a estação incinerada.
O projeto escolhido entre mais de cem propostas de todo o mundo veio do Estúdio 41, um escritório de arquitetura brasileiro com sede em Curitiba, capital do Estado do Paraná. “Reunimos uma equipe multidisciplinar de cerca de 15 especialistas em diversas áreas, desde resistência ao vento até geotécnica e isolamento térmico, para nos ajudar a pensar em como responder às duras condições ambientais na Antártida. Como alguns dos escritórios concorrentes já haviam construído outras instalações de pesquisa no continente, sabíamos que vencer seria uma decisão difícil. Portanto, conseguir foi realmente emocionante”, disse o arquiteto Emerson Vidigal, um membro da equipe do Estúdio 41.
A equipe passou 2 anos – de 2013 a 2015 – trabalhando no projeto antes que a China National Electronics Import & Export Corporation, uma empresa de construção chinesa, começasse a construir a estação. “Passamos um ano em pesquisa, olhando para edifícios semelhantes na Antártica, e tivemos a sorte de poder aprender em detalhes com a estação de pesquisa indiana Bharati”. Conversando com os engenheiros da Kaefer, a empresa de construção alemã que montou a Bharati, nos deu uma compreensão mais profunda do que estávamos enfrentando. Nossos parceiros do escritório de engenharia português AfaConsult também foram cruciais no processo, pois foi muito mais um desafio de engenharia do que um desafio arquitetônico”, acrescentou Vidigal.
Maior e melhor
Com 4.500 metros quadrados, as novas instalações de pesquisa têm quase o dobro da área da antiga estação e podem abrigar 64 pessoas. A estrutura de aço contém um exterior de poliuretano e um interior isolante de lã mineral. “Entre as camadas externas e internas há um buffer de 60 centímetros para a transição de temperatura com ar a 10°C em média, o que ajuda a economizar energia para o aquecimento”, disse Vidigal.
Como a montagem da estação teve que ser feita durante o verão austral, quando os navios podem chegar à Baía do Almirantado, a logística para transportar máquinas de construção, trabalhadores e estruturas pré-montadas teve que ser cuidadosamente planejada. Quase 5 anos e cerca de 100 milhões de dólares mais tarde, a estação estava pronta.
Para o glaciólogo Jefferson Simões, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e vice-presidente do Comitê Científico Internacional de Pesquisa Antártica, o investimento valeu o tempo e o esforço. “A neve e o solo congelado se acumulariam diante das portas da velha estrutura, às vezes dificultando a entrada e saída. É muito bom que o novo prédio seja elevado do solo para que o vento possa soprar a neve por baixo”, disse ele.
Cinco dos 17 laboratórios planejados do Comandante Ferraz (aqueles focados em microbiologia, biologia molecular, química, microscopia e uso comum) estão prontos. Estes espaços estão equipados com instrumentos que vão desde leitores de DNA até ultracongeladores e purificadores de água.
Wim Degrave, coordenador da FioAntar (um projeto de pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz que busca patógenos antárticos que possam ameaçar a saúde humana, animal e ambiental), esteve na estação no final de 2019 para montar o laboratório de microbiologia. Para ele, a nova estação permitirá uma atualização significativa para a pesquisa.
“Normalmente, tivemos que processar solo, água, plantas, líquen e outras amostras em um navio de pesquisa, congelá-las e esperar até que o navio voltasse ao Rio de Janeiro muitos meses depois para começar a fazer pesquisas. Isto não é o ideal, já que alguns microorganismos menos estáveis, como os vírus, podem se deteriorar. Agora seremos capazes de isolar e analisar amostras frescas na estação. Não só a qualidade da pesquisa será melhor, mas também será possível trabalhar o ano inteiro em uma continuidade entre a amostragem e a análise, ganhando muito tempo”, explicou ele.
Mesmo grupos de pesquisa que não trabalharão diretamente no Comandante Ferraz serão beneficiados com isso. “Esta estação é uma fonte de orgulho para o Brasil e sua ciência”, disse o paleontólogo Alexander Kellner, coordenador do projeto PaleoAntar do Brasil, que realiza pesquisas paleontológicas na Antártida. A equipe de Kellner vai frequentemente à Ilha James Ross, a sudeste da Península Antártica, para procurar fósseis congelados. “Um quebra-gelo seria uma grande adição à nova estação”, acrescentou ele. “Seríamos capazes de fazer pesquisas em todo o continente”.
Um lugar estratégico
Um aspecto no qual a maioria dos pesquisadores concorda é que uma estação de pesquisa na Antártica é estratégica em termos geopolíticos, bem como científicos. “Somente os países que estão fazendo pesquisa lá em baixo terão uma palavra a dizer no futuro do continente”, enfatizou Simões.
“Mas muito disso dependerá de financiamento para projetos de pesquisa, que são bastante escassos no Brasil atualmente”, acrescentou ele.
Para ele, a pesquisa na Antártida está longe de ser um luxo. Muitos projetos enfocam as mudanças climáticas, a poluição do ar, o ciclo do carbono e uma infinidade de outros estudos que afetam diretamente a vida na Terra, assim como a política. Por exemplo, Simões disse, “analisando alguns núcleos de gelo há alguns anos, pudemos detectar claramente a poluição por urânio proveniente da mineração na Austrália nas últimas décadas, bem como arsênico devido à mineração de cobre no Chile”.
Simões disse que o planejamento de pesquisa do Brasil na Antártica está sendo reestruturado. Como todos os projetos foram interrompidos durante a pandemia, os cientistas estão buscando recursos que vão além de 2022. “Ainda não temos uma perspectiva de financiamento depois disso. A estação de pesquisa não pode se tornar um elefante branco. Se o governo nos concedesse apenas um milhão de dólares por ano, seríamos capazes de realizar milagres”, disse Simões.
“Uma pequena fração do fundo de bilhões de dólares que o congresso está tentando aprovar para financiar campanhas políticas (o fundo eleitoral) faria um grande bem para a pesquisa brasileira”, acrescentou Kellner.
Com informações de EOS.