A evolução vertebrada tomou um rumo crucial há cerca de 320 milhões de anos, quando os primeiros tetrápodes transitaram da água para a superfície terrestre, dando origem a três grandes clades: os répteis, as aves (um ramo evolutivo de répteis) e os mamíferos. Devido a sua ancestralidade comum, os cérebros de todos os tetrápodes compartilham uma arquitetura basal semelhante, estabelecida no início da evolução. No entanto, como as variações nesta arquitetura comum contribuíram para atributos específicos permaneceram um mistério por muito tempo.
Agora, uma equipe de pesquisadores do Instituto Max Plank de Pesquisa Cerebral em Frankfurt, na Alemanha, tentou esclarecer estas questões gerando um atlas molecular do cérebro do dragão barbado australiano (Pogona vitticeps) e comparando-o com o dos ratos. A pesquisa foi publicada na revista Science.
A crença generalizada era que os cérebros de mamíferos consistem de cérebros de répteis antigos suplementados com novas características de mamíferos. Entretanto, o estudo revelou que tanto os cérebros de mamíferos quanto os de répteis desenvolveram seus próprios tipos e circuitos de neurônios específicos, a partir de um conjunto ancestral comum.
“Os neurônios são os mais diversos tipos de células do corpo. Sua diversificação evolutiva reflete alterações nos processos de desenvolvimento que os produzem e pode impulsionar mudanças nos circuitos neurais aos quais pertencem”, explicou Gilles Laurent, diretor do Instituto Max Planck, autor principal do estudo.
“Por exemplo, áreas distintas do cérebro não funcionam isoladamente, sugerindo que a evolução de regiões interconectadas, como o tálamo e o córtex cerebral, pode de alguma forma estar correlacionada. Também, uma área cerebral em répteis e mamíferos que derivou de uma estrutura ancestral comum pode ter evoluído de tal forma que permanece ancestral em um clade hoje, enquanto é ‘moderna’ no outro. Por outro lado, poderia ser que ambos os clades agora contenham uma mistura de tipos de neurônios comuns (antigos) e específicos (novos). Estes são os tipos de questões que nossas experiências tentaram abordar”.
Usando uma abordagem transcriptômica celular que emprega sequenciamento de RNA de célula única para detectar grandes frações das moléculas de RNA – ou “transcriptomas” – presentes em células únicas, os cientistas mapearam e compararam os cérebros do P. vitticeps (espécie de lagarto do gênero Pogona, endêmico da Austrália) com os de ratos.
“Traçamos o perfil de mais de 280.000 células do cérebro de Pogona e identificamos 233 tipos distintos de neurônios”, disse o primeiro autor do estudo, David Hain, um estudante de pós-graduação no laboratório do Professor Laurent. “A integração computacional de nossos dados com dados do mouse revelou que esses neurônios podem ser agrupados transcriptomicamente em famílias comuns, que provavelmente representam tipos de neurônios ancestrais”.
Outras análises revelaram que os neurônios no tálamo podem ser agrupados em dois domínios transcriptômicos e anatômicos, definidos por sua conectividade com outras regiões do cérebro. Estas regiões conectadas têm destinos diferentes em mamíferos e répteis, sendo uma delas altamente divergente. A comparação das transcriptomas talâmicas dos dois domínios revelou que a divergência transcriptômica correspondeu à das regiões-alvo.
“Isto sugere que a identidade transcriptômica neuronal reflete, pelo menos em parte, a conectividade de longo alcance de uma região com seus alvos. Como não temos os cérebros de vertebrados antigos, reconstruir a evolução do cérebro ao longo do último meio bilhão de anos exigirá a conexão de dados moleculares, de desenvolvimento, anatômicos e funcionais muito complexos de forma autoconsistente. Vivemos em tempos muito emocionantes, porque isto está se tornando possível”, concluiu o professor Laurent.