Um estudo, publicado na Scientific Reports, que faz parte do grupo Nature, relata que a voz da múmia Nesiamon foi “reproduzida com exatidão”.
Em vida, Nesiamon foi um sacerdote durante o reinado do faraó Ramsés XI e dedicou a sua vida a recitar orações ao deus Amón no templo de Karnák, localizado nas proximidades da atual Luxor, uma cidade ao sul do Egito, onde seus restos mortais foram encontrados por arqueólogos. Eles resistiram ao bombardeio dos alemães à cidade britânica de Leeds durante a Segunda Guerra Mundial. A mesma sorte, contudo, não tiveram outras duas múmias quando, em 14 de março de 1941, uma porção de bombas incendiárias e explosivas foram jogadas sobre Leeds e acabaram atingindo o museu de arqueologia da cidade pela Luftwaffe, foi o ramo aéreo da Wehrmacht (o nome do conjunto das forças armadas da Alemanha durante o Terceiro Reich) da Alemanha Nazista.
Sacerdote de Ramsés XI, Nesiamon viveu há 3.000 anos. Mas todo esse tempo não foi capaz de impedir um feito notável. Segundo um estudo publicado no prestigiado periódico Scientific Reports nesta quinta-feira (23), uma equipe multidisciplinar das Universidades de Londres e York foi capaz de reproduzir uma das vozes outrora escutadas nos cantos e preces no templo de Karnák. Em outras palavras, Nesiamon ganhou voz e voltou a falar, segundo o estudo.
Como os cientistas fizeram isso? Eles levaram os restos mumificados de Nesiamon para o Hospital Geral de Leeds, onde a múmia é guardada, colocou-os em um scanner de raios X, estudou seu trato vocal e o reconstruiu com uma impressora 3D. Simples assim, para os padrões atuais, pelo menos. Como resultado a equipe de cientistas obteve um breve som, similar à vogal “e”, que eles garantem que seria a voz de Nesiamon que retumbava no templo de Karnak.
“Saída acústica da laringe humana”
Escanear e imprimir o aparelho fonador da múmia foram partes importantes da pesquisa. Contudo há outros feitos notáveis nesse estudo. O Professor David Howard, diretor do Departamento de Engenharia Eletrônica da Universidade de Londres, é o inventor de um curioso aparato, o “órgão de tratos vocais”.
Esse aparelho é um equipamento capaz de emitir sons de vogais com um teclado conectado a laringes eletrônicas e ao aparelho fonador de seres humanos impressos em 3D a partir de escâneres. “A língua dele encolheu, provavelmente por desidratação. Se tivéssemos que reproduzir o discurso dele, teríamos que criar uma língua com um formato que pareça razoável à boca”, explica Howard, segundo a National Geographic.
Segundo a CNN, esse projeto de pesquisa surgiu por acaso quando Howard falava sobre seu trabalho de reprodução do trato vocal de seres humanos vivos com o ex-colega de trabalho e coautor deste artigo, John Schofield, da Universidade de York. “Ele olhou para mim e disse: ‘Sou um arqueólogo. Isso poderia ser usado para restos mortais?’”, contou o cientista.
De fato, os pesquisadores conseguiram obter um som semelhante ao de uma vogal “e” de Nesiamon, porque recriaram o som que seu trato vocal emitiria da maneira que foi mumificado. “Acreditamos que é perfeitamente plausível que um dia palavras como a que ele falou possam realmente ser produzidas”, diz Howard, cujos achados podem lançar as bases para recriar e ouvir a voz de uma pessoa antiga, ou mesmo ajudar a desenvolver um meio de devolver a voz a pessoas que tiverem suas laringes afetadas por tumores, por exemplo.
A amostra do som, criada com essa ferramenta de sintetização de fala capaz de projetar uma aproximação de sua voz, “reconstrói o som que sairia de seu trato vocal se ele estivesse em seu caixão e sua laringe revivesse”, esclarece Howard ao The New York Times.
De acordo com Ben Guarino, do Washington Post, Howard e seus colegas usaram a imagem obtida da tomografia computadorizada do trato vocal de Nesiamon – um tubo de apoio à fala biologicamente único, o que explica por que cada pessoa tem uma voz única, o qual se estende da laringe até a boca – para imprimir em 3D uma cópia dessa estrutura, incluindo a boca. Em seguida, os cientistas então conectaram esses órgãos artificiais a um alto-falante e tocaram um sinal eletrônico, imitando o som de uma “saída acústica da laringe humana”. O pesquisador já havia usado essa técnica em seres humanos vivos, inclusive nele próprio, relata Katie Hunt da CNN, mas essa pesquisa marca a primeira vez que a tecnologia foi usada para recriar a voz de um indivíduo já falecido.
Os autores do estudo disseram que Nesiamon ficaria satisfeito com essa recriação post-mortem de sua voz. “É o cumprimento de sua crença”, ter sua voz ouvida na vida após a morte, disse ao Post Schofield, arqueólogo da Universidade de York, na Inglaterra. Os pesquisadores escolheram os restos mortais mumificados de Nesiamon por que o tecido mole estava razoavelmente bem preservado. A técnica não funciona com restos mortais de esqueletos.
Contudo, Howard adverte que o som que eles reproduziram é apenas um som da voz, o que não é o mesmo que dizer que o padre egípcio estivesse realmente falando, embora isso seja algo que possa ser possível no futuro, o que viria a ser uma maneira que nós poderíamos explorar o passado.
“Na verdade, não é um som que ele provavelmente teria emitido na prática porque a maior parte da sua língua já não existe”, disse Howard à CNN. “Os músculos da língua de Nesiamon foram perdidos e a língua desempenha um papel fundamental na fala, alterando os sons que podemos emitir”, disse Howard. Estima-se que ele tenha morrido por volta de seus ciquenta e poucos anos e é possível afirmar que ele tenha tido problemas devido ao desgaste dos destes e à gengivite.
Futuro
Os pesquisadores agora pretendem recriar o trato vocal e o som que ele emitira com essa técnica usando os restos mortais do Homem de Lindow, revelou Howard à CNN. Os remanescentes do Homem de Lindow datam de 2.000 anos de idade e foram encontrados em 1984 preservados em uma turfeira em Cheshire, no norte da Inglaterra. Fósseis são relativamente comuns em turfeiras. “Poderíamos ir a qualquer outra múmia que esteja no estado certo de preservação e, se tivéssemos permissão, poderíamos fazer exatamente a mesma coisa”, explicou.
Howard também espera realizar uma segunda etapa da pesquisa utilizando o trato vocal de Nesiamon, que pode resultar na reprodução do som dele cantando, como faria em seu papel de escriba e sacerdote durante o reinado do faraó Ramsés XI. Sua voz era uma parte essencial de seus deveres rituais, que envolviam falar, declamar e cantar.
Segundo Howard, os estudiosos egípcios da equipe disseram que a fonética e a melodia das canções são conhecidas, então “em princípio, poderíamos fazê-lo emitir sons diferentes e começar a reproduzir partes do que ele realmente cantou”. Para fazer isso, Howard disse que usaria um software de computador para reconstruir a língua com base na média de um aparelho vocal do tamanho do de Nesiamon.
“Nos dê uma língua que tenha tamanho próximo da língua real de Nesiamon, para que possamos mover todo o trato vocal usando a ciência de produção da fala. É viável, embora não possamos fazer isso facilmente neste momento”.
Enquanto esse estudo que permitirá Nesiamon cantar não é feito, o cientista sugere que o som vocal publicado neste estudo da Scientific Reports possa ser usado na exposição de Nesiamon do museu da cidade de Leeds, o que provavelmente será feito, onde a múmia e o caixão são a estrela entre os artefatos do museu e estão em exibição permanente há quase 200 anos. Outra possibilidade e reproduzir o som para os mais de um milhão de visitantes anuais ao templo bem preservado de Karnak, no Egito, onde Nesiamon cumpriu suas tarefas sacerdotais. “A síntese de sua função vocal nos permite fazer contato direto com o Egito antigo, ouvindo um som de um aparelho vocal que não é ouvido há mais de 3.000 anos”, disseram os pesquisadores no artigo.
O estudo pode ser lido em Scientific Reports.