Sexo, religião e um tratado sobre anatomia

Victor Hugo
Um "homem musculoso" retirado do livro "De humani corporis fabrica", com comentários de um leitor. Crédito: Bibliotecha Civica Romolo Spezioli, Fermo. Call no.:1e7n.1582

Nature — As ilustrações de Andreas Vesalius sobre o corpo humano desconcertaram alguns dos primeiros leitores, como revelam suas marginais. Dániel Margócsy, Mark Somos e Stephen N. Joffe explicam.

[dropcap]O[/dropcap] “De Humani corporis fabrica”, do anatomista renascentista Andreas Vesalius, é um trabalho fundamental da medicina ocidental. Suas mais de 200 xilogravuras revolucionaram a forma como as pessoas imaginavam o corpo humano, sem a pele e cortado, revelando músculos, nervos, órgãos e ossos. Até hoje, 475 anos após a primeira publicação, as imagens ousadas do “homem musculoso” em poses sinuosas (do ilustrador Jan Steven van Calcar) seduzem.

Mais de 700 cópias são das edições de 1543 e 1555, supervisadas por Vesalius. Destas, cerca de dois terços contém comentários nas margens, rabiscos bizarros, imagens coloridas e até desfiguradas. Os primeiros leitores, em evidência, estudaram diligentemente o tratado de Vesalius e, ainda assim, não tiveram escrúpulos em escrever em um volume extremamente caro.

Com um olhar mais profundo, tais anotações e rabiscos contam duas histórias. Uma delas é que algumas pessoas acharam as imagens desconcertantes e tentaram esclarecê-las de maneiras inovadoras. Outra é que os piedosos acharam a nudez necessária das figuras escandalosa, e se sentiram impelidos a pesar com tinta e tesoura. Nosso estudo das reações de centenas de leitores nos ensinou que as comunidades médicas nem sempre adotam soluções inovadoras rapidamente, mesmo quando são apresentadas em um formato tão elegante como o Fabrica. Leva tempo para se acostumar com a novidade. E aprendemos que mesmo as mentes científicas mais engenhosas podem deixar de prever como as instituições políticas e religiosas responderão ao seu trabalho.

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A Veia Porta, com a Veia Hemorroidária destacada. A veia porta, com a veia hemorroidária destacada. Crédito: Reitor e membros do Queen’s College, Oxford.

Os primeiros leitores do Fabrica foram a primeira geração de médicos e cirurgiões na Europa a enfrentar a assustadora tarefa de usar imagens impressas detalhadas para identificar os órgãos do corpo e aprender sobre a fisiologia humana. Vesalius e van Calcar enfrentaram desafios próprios. A imagem do Fabrica da ramificação da veia porta, que transporta o sangue do intestino para o fígado, é altamente complexa — e não é bem sucedida. É quase impossível, por exemplo, destacar a veia hemorroidária. (Na época, isso era importante porque a imaginava-se que a veia deveria ser a causa tanto da menstruação quanto das hemorroidas, consideradas processos análogos que expurgavam o sangue corrompido do corpo.) Assim, em uma cópia agora na biblioteca do Queen’s College na Universidade de Oxford, no Reino Unido, alguém usou uma pena e uma tinta vermelha para colorir esta veia sinuosa, como uma criança jogando um jogo de labirinto.

Em uma cópia que pertenceu ao médico Georg Palma (Nuremberga, Alemanha), uma intrincada imagem do cérebro é “aprimorada”. Palma pintou seis pares de nervos cranianos em diferentes tons em aquarela e usou as mesmas cores para sublinhar os pares correspondentes no texto da página seguinte.

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Imagem do cérebro com os nervos cranianos coloridos e codificados em pares. Crédito: Stadtbibliothek im Bildungscampus Nürnberg, Med. 155.2°, p. 511 and 513

Até mesmo Vesalius percebeu que suas imagens poderiam ser confusas e inventou um método engenhoso para explicá-las. Uma letra ou número era impresso na imagem de cada parte do corpo, com uma chave separada. Infelizmente, as letras e símbolos eram muitas vezes pequenos demais para se destacarem do fundo cheio de cores e formas. Alguns leitores frustrados sublinharam, destacaram, ampliaram ou repetiram tais caracteres nas margens. Em um homem musculoso, por exemplo, a minúscula letra identificando um músculo da coxa mal era visível, e um leitor confuso perguntou desesperadamente se tratava-se da letra grega µ ou a letra romana u.

Diante de tais desafios, muitos médicos podem ter desistido das imagens. De fato, quando reconstruimos o que os primeiros leitores e estudiosos modernos achavam fascinante sobre o Fabrica, ficou evidente que era o texto. A clara maioria dos leitores dos séculos XVI e XVII que anotou o livro se concentrou nisso e não deixou vestígios de ter se envolvido com as ilustrações. As críticas do século XVI ao Fabrica confirmam essa impressão, porque tendiam a discutir apenas o texto.

Isso não é surpresa. Os leitores eruditos do Fabrica foram treinados nas tradições do humanismo renascentista, que enfatizavam fortemente a análise textual. Mesmo que achassem difícil interpretar a informação visual, os médicos eram especialistas em compreender longos textos em Latin. Além disso, o “universo interior” do corpo mal tinha sido mapeado. Ainda hoje, é difícil entender imagens de órgãos internos se você nunca viu um corpo dissecado, e os radiologistas precisam de anos de treinamento para interpretar radiografias ou ressonâncias magnéticas.

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Uma ilustração do tronco masculino censurado com um “avental de pudor”. Crédito: Bibliotheque municipale de Bourges, Bibliotheque des Quatre Piliers.

Se as imagens não fossem úteis para entender o corpo, qual era o propósito delas? Para as autoridades da Igreja no período, a resposta foi clara. Eles argumentaram que tais figuras tinham um apelo erótico porque mostravam os genitais — e por isso deveriam ser censuradas. A primeira versão do Index librorum prohibitorum, a lista de livros banidos pela Igreja Católica, saiu em 1559, e não mediu palavras sobre livros “licenciosos”. Isso incluía volumes em anatomia. Muitos que possuíam o Fabrica sentiram que deveriam pintar aventais nos “homens musculosos” (como na cópia pertencente ao Colégio Jesuíta de Bourges, na França), ou cortar as partes ofensivas.

Apenas uma minoria de cópias do Fabrica foi tão alteradas. Verificamos todas as cópias sobreviventes da época e achamos as imagens intactas na maioria delas pertencentes aos católicos do período. A forma como a censura aconteceu levanta a hipótese de que, pelo menos até os julgamentos de Galileu Galilei no início do século XVII, a Igreja achava as ilustrações anatômicas mais perigosas do que o heliocentrismo.

*Imagem de capa: Um “muscle man” De humani corporis fabrica com anotações de um leitor. Crédito: Bibliotecha Civica Romolo Spezioli, Fermo. Identif.: 1e7n.1582

Referência:

  1. Dániel Margócsy, Mark Somos e Stephen N. Joffe. Sex, religion and a towering treatise on anatomy. Nature 560, 304-305 (2018). doi: 10.1038/d41586-018-05941-0. Tradução de Victor Hugo Joaquim. Disponível em: <<https://www.nature.com/articles/d41586-018-05941-0>>
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