Em 2014, Miriam van Staveren passou um final de semana nas Ilhas Canárias e pegou uma infecção. Os ouvidos e seios paranasais latejavam, então ela foi no médico do resort que receitou um tratamento de seis dias com um antibiótico popular conhecido como levofloxacin. Ela retornou para casa, em Amsterdam, e três semanas depois ela começou a sentir dor no tendão do calcâneo (tendão de Aquiles), depois nos joelhos e, por fim, nos ombros. Ela desenvolveu dores nas pernas e nos pés, além de fadiga e depressão. “Eu estava cada vez pior”, disse ela. “Eu sentia dor o dia todo”. A médica de 61 anos, jogadora de tênis e que praticava caminhadas, agora mal podia caminhar e subia escadas em quatro apoios.
Desde então ela visitou uma variedade de especialistas. Alguns excluíram a possibilidade de serem sintomas psicossomáticos. Outros sugeriram fibromialgia ou síndrome da fadiga crônica. Van Staveren, entretanto, não teve dúvidas. Ela está convencida que o antibiótico a envenenou.
E ela não está sozinha. Levofloxacin é um antibiótico da classe das fluoroquinolonas, uma das mais comumente prescritas no mundo. Nos Estados Unidos, em 2015, esse medicamento foi prescrito 32 milhões de vezes, classificando como a quarta classe de antibiótico mais popular do país. Porém, para uma pequena parcela das pessoas, fluoroquinolonas tem uma reputação ruim. Existem sites e grupos no Facebook com nomes como Floxie Hope e My Quin Story onde milhares de pessoas que adoeceram após tratamento com fluoroquinolona compartilham suas histórias. Muitos deles descrevem uma condição progressiva e devastadora, com sintomas que vão de distúrbios psicológicos e sensoriais até problemas nos músculos, tendões e nervos, que permaneciam mesmo após cessarem a administração do medicamento. Eles chamam isso de “estar sendo floxed”
Por décadas, agências reguladoras e médicos foram céticos ao considerar que um curto período de uso de um antibiótico poderia gerar efeitos tão devastadores e com um impacto tão prolongado. Mas depois de uma campanha persistente por grupos de pacientes, algumas atitudes passaram a mudar em 2008, quando a Food and Drug Administration (FDA) o primeiro do que seria uma série de alertas sobre os efeitos colaterais dos medicamentos fluoroquinolona, incluindo ruptura de tendão e danos nervosos irreversíveis. Em 2016, a agencia aceitou a existência de uma potencial síndrome permanente que nomearam Incapacidade Associada à Fluoroquinolona (FQAD), e recomendou que a droga deveria ser prescrita apenas para infecções graves. Essa movimentação estimulou a reavaliação desses antibióticos por outras agências. A Health Canada alertou em janeiro de 2017 sobre os efeitos colaterais incapacitantes e persistentes da droga, e é esperado que a Agência Europeia de Medicina (EMA) publique os resultados de uma revisão esse ano, depois de uma audiência pública planejada para junho.
Fluoroquinolonas são antibióticos válidos e seguros para a maioria das pessoas. Apesar disso, eles são prescritos tão frequentemente que é provável que seus efeitos colaterais atingiram centenas de milhares de pessoas, só nos Estados Unidos, diz cientista que estuda as causas da FQAD. A toxicidade da fluoroquinolona é um exemplo convincente de um entendimento emergente de que antibióticos podem não prejudicar apenas micróbios, mas também lesar seriamente células humanas. Até recentemente investigações dos efeitos colaterais dos antibióticos focavam em como as drogas perturbava o microbioma humano, diz James Collins, engenheiro médico do MIT, Cambrige. “Antibióticos estão perturbando nossas células também, e de maneira bem severa”.
O lado escuro das fluoroquinolonas
Antibióticos da classe quinolona, desenvolvidos na década de 1960, matam a bactéria bloqueando a atividade de enzimas chamadas topoisomerases classe II, normalmente responsável por desembaçar o DNA durante a replicação. Essas enzimas geralmente cortam a dupla hélice do DNA, inserem outra parte de fita no lugar então remenda o corte. Mas as quinolones se ligam a essas enzimas, prevenindo a remenda do corte.Na década de 1980, cientistas adicionaram átomos de flúor na estrutura das quinolonas. Isso tornou possível que os antibióticos penetrassem os tecidos, inclusive o sistema nervoso central, potencializando sua eficácia contra uma variedade de infecções bacterianas.
Algumas fluoroquinolonas aprovadas pela FDA foram rapidamente removidas de circulação por conta de severos efeitos colaterais que estavam apresentando, incluindo mortes. Trovafloxacin foi retirado em 1999 por estar associada a dano hepático. Mas outras se tornaram a primeira opção de medicação tanto para infecções severas quanto para reclamações rotineiras, com raros efeitos colaterais. “Essas são drogas comumente usadas porque são muito efetivas”, diz Joe Deweese, bioquímico que estuda topoisomerases na Lipscomb University College of Pharmacy, em Nashville, Tennessee. Na década de 90, ciprofloxacin (Cipro) foi administrada para as tropas dos Estados Unidos no Golfo Persa como profilaxia, caso fossem expostos a esporos de Antraz. Em 2001, as vendas da Cipro aumentaram após uma série de ataques terroristas envolvendo Antraz; o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) recomendou tratamento de 60 dias para qualquer um que pudesse ser exposto.
Mas, àquela altura, algumas pessoas já haviam percebido potenciais problemas. Em 1998, o então jornalista Stephen Fried publicou um livro chamado Bitter Pills (“Pílulas Amargas”, em tradução livre) sobre as severas e prolongadas reações neurológicas de sua esposa pela ofloxacin. Esse foi o gatilho para uma onda de relatos em websites como o Fórum de Reações Adversas dos Antibióticos de Quinolona, que até 2001 já acumulava mais de 5 mil posts. Jay Cohen, na época psiquiatra e pesquisador na Universidade da Califórnia, San Diego, contatou esses pacientes através desses sites e publicou 45 estudos de caso. Cohen alertou que algumas pessoas, ao tomar fluoroquinolonas, desenvolveram problemas severos em vários órgãos. Esses efeitos iniciavam em pouco tempo e duravam meses ou até anos.
O trabalho de Cohen foi descredibilizado na época porque provinha de relatos de internet, mas as reclamações e petições continuaram. De 1980 até o final de 2015, a FDA recebeu relatos de mais de 60 mil pacientes centenas de milhares de “efeitos adversos severos” associados com cinco fluoroquinolonas ainda encontradas no mercado (mais comumente citando ruptura de tendão, além de sintomas neurológicos e psiquiátricos), incluindo 6 575 relatos de morte. A FDA diz que os relatos recebidos – enviados por indústrias farmacêuticas, por médicos e diretamente por consumidores – não podem ser utilizados para tirar conclusões sobre a gravidade dos problemas associados com as drogas. Ainda assim, as fluoroquinolonas atraíram mais reclamações que qualquer outro antibiótico amplamente utilizado. E é estimado que apenas 1-10% desses efeitos adversos são relatados ao FDA, sugerindo que centenas de milhares de pessoas possam ter sido prejudicadas pelo medicamento só nos Estados Unidos, conta Charles Bennett, hematologista da Escola de Farmácia da Universidade da Carolina do Sul, em Columbia. Bennet também é diretor da Rede Sul de Reações Adversas, um observatório de segurança farmacêutica que vem trabalhando com pessoas afetadas por fluoroquinolonas desde 2010.
Em 2008, a FDA anunciou uma “Caixa preta” alertando sobre ruptura de tendão entre os que utilizaram esses antibióticos; em 2013 foi adicionado risco de dano nervoso irreversível. (Esses avisos acompanham o medicamento, chamando a atenção para possíveis riscos severos e que ameaçam a vida). Conforme os alertas foram montados, os pacientes iniciaram ações judiciais contra os fabricantes dos medicamentos, alegando que não haviam sido adequadamente informados dos riscos. Esses casos foram vencidos, perdidos ou liquidados por montantes não revelados, e muitos ainda estão em andamento; os fabricantes argumentam que eles lidaram com os riscos de maneira apropriada e trabalham com o FDA para atualizar os rótulos de segurança.
Em novembro de 2015, o FDA votou para reconhecer o FQAD como uma síndrome com base em 178 casos que a agência considerou como óbvios: pessoas saudáveis que tomaram fluoroquinolonas para doenças menores e depois desenvolveram condições incapacitantes e potencialmente irreversíveis. A FDA também notou um padrão preocupante: as fluoroquinolonas tiveram uma porcentagem muito maior de deficiências entre seus relatos de eventos adversos graves do que outros antibióticos.
Dano mitocondrial
Beatrice Golomb, da Universidade da Califórnia, San Diego, trabalha há uma década com pessoas afetadas pelas fluoroquinolonas, começando com David Melvin, um policial e ciclista que teve que usar cadeira de rodas após receber levofloxacin por conta de uma suspeita de epididimite, em 2007. O acúmulo de evidências, diz Golomb, sugere que as fluoroquinolonas danificam as mitocôndrias, responsáveis pela produção de energia das células humanas e são derivadas de uma simbiose bacteriana que ocorreu há bilhões de anos. Esse tipo de prejuízo pode afetar qualquer célula do corpo, explicando a ampla variedade de sintomas que parecem piorar com o tempo.
A toxicidade da mitocondria é um problema com várias classes de medicamentos, diz Mike Murphy, que estuda a biologia da mitocondria na Universidade de Cambridge, Reino Unido. Como as mitocondrias ainda mantém algumas similaridades com seus ancestrais bacterianos, antibióticos podem representar riscos particulares para elas. Pesquisadores demonstraram, por exemplo, que Antibióticos aminoglicosídeos podem causar perda auditiva por danificar as mitocondrias das células dos pêlos do ouvido.
Estudos isolados da década de 80 em diante tem sugerido que as fluoroquinolonas prejudicam a função mitochondrial, mas um estudo de 2013, de Collins e colaboradores é o mais convincente, dizem os pesquisadores. Eles relataram que várias classes de antibióticos desencadearam estresse oxidativo – aumento de moléculas de oxigênio altamente reativas – nas mitocondrias, inibindo sua função em uma variedade de células de mamíferos, como em camundongos. “Nós nos supreendemos com a potência dos efeitos e como eles eram comuns em diferentes classes de antibióticos”, diz Collins. “Mas os maiores efeitos foram observados nas quinolonas”.
Pesquisadores farmacêuticos notaram o problema também: em 2010, a toxicologista Yvonne Will e colaborados da Pfizer (uma das maiores empresas farmacêuticas do mundo), em sua sede de pesquisa em Croton, Connecticut, relataram um ensaio para detector dano mitochondrial no início do desenvolvimento de novas drogas. Todas as fluoroquinolonas testadas danificaram as mitocondrias em células hepaticas humanas – gerando o que os pesquisadores descreveram como “efeito forte” em concentrações terapeuticas, embora Will alerte que não é possível extrapolar desse resultado para resultados clínicos.
Mas o potencial de dano mitocondrial ainda não é amplamente apreciado entre os pesquisadores de antibióticos e a comunidade médica, diz Collins. “Eu acho que as pessoas geralmente assumem que os antibióticos não afetam as células dos mamíferos”, diz ele. Um problema é que ainda não existe um biomarcador confiável que os pesquisadores possam usar para testar danos mitocondriais em pessoas, vinculando a pesquisa de cultura celular à experiência clínica. Também não se sabe precisamente como as fluoroquinolonas estão danificando as células humanas. Uma revisão da segurança dos antibióticos de 2013 pela FDA, por exemplo, citou um estudo de 1996 relatando que a Cipro causou quebras de DNA na mitocôndria em uma variedade de culturas celulares de mamíferos. Mas Neil Osheroff, um bioquímico da Universidade Vanderbilt em Nashville, Tennessee, que estuda fluoroquinolonas, tem dúvidas sobre esse resultado. Ele fez seus próprios testes de laboratório e descobriu que, em concentrações terapêuticas, as fluoroquinolonas prescritas pelos médicos têm muito pouco efeito no DNA humano. Enquanto isso, o dano mitocondrial não é a única teoria em jogo: um estudo de 2015, feito em células renais humanas, relatou que as fluoroquinolonas podem se ligar a átomos de ferro dos sítios ativos de várias enzimas que modificam o DNA, levando a mudanças epigenéticas que podem estar relacionadas a alguns dos efeitos colaterais das drogas.
Em uma conferência em setembro passado (2017), Bennett relatou dados preliminares que podem sugerir porque apenas algumas pessoas desenvolvem efeitos colaterais graves de fluoroquinolonas. Ele tomou amostras de saliva de 24 pessoas que relataram efeitos colaterais neuropsiquiátricos – como perda de memória, ataques de pânico e depressão – e descobriu que 13 deles (57%) compartilhavam uma variante genética geralmente vista em apenas 9% da população. Bennett não está revelando a identidade do gene porque ele tem um pedido de patente em andamento, mas ele diz que parece ser um local relacionado ao metabolismo pobre das quinolonas. Tal mutação pode causar níveis perigosamente altos de droga se acumulando nas células, inclusive no cérebro. Bennett está agora conduzindo um teste com mais 100 participantes para ver se ele pode replicar o resultado. Se assim for, isso pode levar a um teste genético para identificar pessoas que não deveriam receber os medicamentos.
A maioria dos cientistas questionados pela Nature sobre fluoroquinolonas, disse que mais pesquisas são necessárias para entender seus efeitos colaterais. Collins espera explorar os danos mitocondriais por antibióticos em outros modelos animais. Ele e Murphy também descobriram, em estudos de laboratório, que dar antioxidantes ao lado de fluoroquinolonas parece atenuar os efeitos nas mitocôndrias. Murphy está interessado em ensaios para evitar toxicidade mitocondrial em drogas; ele possui ações em uma empresa que visa estabelecer alguns. Mas esses testes são difíceis e caros, especialmente para drogas que são dadas em situações que ameaçam a vida, diz ele. A Golomb está atualmente conduzindo uma pesquisa on-line sem financiamento para coletar informações sobre as experiências de milhares de pacientes. Ela espera que isso leve a hipóteses sobre o que pode mitigar danos que poderiam ser testados em ensaios clínicos. Mas pouco suporte está disponível. Isso é típico para pesquisas sobre segurança de medicamentos. Investigar medicamentos que estão no mercado há anos não é uma prioridade para agências de pesquisa, como os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, diz Bennett. Os fabricantes não têm incentivo para financiar estudos de segurança pós-comercialização, especialmente para medicamentos sem patente, como cipro e levofloxacina, em que a grande maioria das vendas é de empresas de genéricos. “Portanto, não há ninguém para defender este trabalho”, diz Bennett.
Outro fator é a relutância dos cientistas em publicar resultados que as empresas farmacêuticas possam achar desfavoráveis. “Há uma longa história de ações adversas contra pessoas que expõem danos a drogas e produtos químicos”, diz Golomb. Ela cita uma lista feita pela empresa farmacêutica Merck de médicos que criticaram o medicamento anti-inflamatório Vioxx (rofecoxib), que foi retirado do mercado devido a um aumento do risco de ataque cardíaco e derrame. De acordo com e-mails internos lidos no tribunal em 2009 como parte de um caso de ação coletiva do Vioxx na Austrália, uma lista enviada por e-mail entre os funcionários da Merck continha os nomes de médicos com os rótulos “neutralizar”, “neutralizado” ou “desacreditar” ao lado deles. (Ao ser questionado pela Nature, a Merck não quis comentar sobre o assunto). Táticas agressivas são “um problema muito grande”, diz Bennett, que afirma ter sido ameaçado por empresas farmacêuticas no passado.
Para Osheroff, há preocupações mais urgentes sobre as fluoroquinolonas, como combater o surgimento de infecções resistentes aos antibióticos e desenvolver novos antibióticos. Mas ele e outros cientistas concordam que os médicos não devem prescrever fluoroquinolonas para infecções relativamente pequenas quando poderiam usar outras drogas. Os alertas da FDA nos rótulos dos medicamentos, entretanto, tem sido lentos em produzir resultados. Segundo o CDC, as prescrições desse antibiótico não diminuiram entre 2011 e 2015. Isso sugere, diz Bennett, que os alertas oficiais não tem sido suficientes para fazer com que médicos mudem seus hábitos. Só os rótulos das fluoroquinolonas já foram alteradas cerca de 20 vezes nos últimos 4 a 5 anos. “É quase impossível para os médicos se manterem atualizados”. Apesar disso, a prescrição de antibióticos fluoroquinolonas diminuiram cerca de 10% em 2016, e números do primeiro semestre de 2017 sugerem que houve nova queda, de acordo com dados não publicados entregues à Nature pela IQVIA, uma empresa de dados relacionados à saúde em Durham, Carolina do Norte.
Enquanto isso, van Staveren, em Amsterdã, reclama que apesar de seu treinamento médico, ela ainda não consegue encontrar um médico que acredite nela. Ela aguarda as recomendações da Agência Europeia de Medicina, e espera que a mesma siga o FDA no reconhecimento da FQAD, e alerte sobre essa síndrome. (A EMA se recusou a comentar enquanto a revisão está em andamento.) “Quero que os médicos sejam informados sobre os riscos, não importa quão raros sejam ou não,” diz van Staveren.
“Eu quero alertas por toda parte e quero que os avisos sejam levados a sério.”
Fonte: Nature