Por que as mulheres estão se saindo melhor na gestão da pandemia? A evolução explica

Samuel Fernando

Em um artigo publicado recentemente pela revista Frontiers in Psychology, dois cientistas, um deles brasileiro, analisam de que maneira a atuação política varia conforme o sexo, em especial no contexto da pandemia. Como eles mostraram, líderes femininas são mais empenhadas afetivamente em minimizar o sofrimento humano direto, enquanto os líderes masculinos são mais focados em estratégias de alto risco e consideram apenas o aspecto econômico.

Tais diferenças estão de acordo com as descobertas mais recentes da psicologia em geral e em especial da psicologia evolucionista, que apontam que mulheres apresentam níveis mais altos de empatia, são orientados para o cuidado, têm maior aversão ao sofrimento e, como um reflexo surpreendente e muito pertinente do que se conhece por sistema imunológico comportamental, exibem uma maior repulsa a patógenos. Enquanto isso, os homens são mais inclinados ao comportamento de risco (risk taking), mais focados em indicadores materiais, status e pontuam mais em traços de personalidade dark-triad (maquiavelismo, psicopatia e narcisismo). 

Os autores também discutem como a seleção sexual diferencial e o investimento parental dimórfico, juntamente com a dimorfismo sexual do cérebro dos mamíferos, resultam em diferenças sexuais na cognição, tomada de decisão e comportamentos associados aos estilos de liderança e estratégias políticas no combate à pandemia. Esse é um fato importante e fundamental que retoma uma discussão, que afinal é muito atual, mas negligenciada e negada por outros pesquisadores, das diferenças entre cérebro masculino e feminino e principalmente das diferenças psicocomportamentais que são mais amplas e especializadas entre homens e mulheres.

Alguns afirmam que apontar essas diferenças seria “neurossexismo“. Bem, o artigo mostra que esse não é o caso. O estudo apresenta a hipótese de especialização de liderança sexualmente dimórfica, segundo a qual as diferenças gerais foram exaptadas durante a evolução humana para criar estilos comportamentais sexo-específicos de liderança que são coletivamente importantes quando enfrentam diferentes tipos de ameaças: ecológica, sociopolítica e agressão. No contexto da pandemia, os dados mostram que a liderança cuidadosa e afetiva das mulheres prevaleceu sobre o comando do “macho guerreiro”.

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Figura do artigo mostrando dados de mortes por COVID-19 por 1 milhão em relação ao Índice de Desenvolvimento Humano nos países europeus. Os pontos de dados são coloridos de acordo com o sexo/gênero do líder do país e dimensionados para testes COVID-19 por 1 milhão.

O estudo inicialmente verificou que 63% dos países liderados por mulheres, contra 50% dos liderados por homens, foram mais efetivos e rápidos no controle do que ainda nem era uma pandemia, eles lançaram campanhas de informação coordenadas uma semana antes do primeiro caso confirmado de covid-19. Um trabalho citado feito em 159 países descobriu que países liderados por mulheres tinham taxas de letalidade médias mais baixas em relação aos países governados por homens. Além disso, os resultados também apontaram que alguns dos líderes que tiveram respostas mais humanitárias eram mulheres (por exemplo, Jacinda Ardern, na Nova Zelândia, Katrín Jakobsdóttir, Angela Merkel na Alemanha, na Islândia, Sanna Marin, na Finlândia), enquanto as propostas indiferentes ou mesmo imprudentes tinham sido feitas por líderes masculinos (Jair Bolsonaro, no Brasil, Daniel Ortega do Nicarágua, Stefan Löfven e o epidemiologista estadual Nils Anders Tegnell, na Suécia, entre outros).

Marco Varella, um dos autores da pesquisa, explica como as mulheres apresentam, em média, um estilo de liderança mais centrado no relacionamento interpessoal e emocional e tendem a ser líderes mais comunais, intuitivas, sensíveis e empáticas; enquanto os homens apresentam, em média, um estilo de liderança voltado para as tarefas, eles assumem mais riscos, são mais ousados, mais constantes e inflexíveis nas condutas. Essas diferenças não são por acaso ou imprecisas, elas estão de acordo com resultados que mostram consistentemente que as mulheres, em média, percebem e se orientam para pessoas com maior interesse psicológico, humano e afetivo, enquanto os homens, em média, são mais orientados para objetos e coisas. Os testes psicométricos mostram que os homens tem menos interesses sociais, menos medo, menos apego e baixa inteligência emocional, enquanto as mulheres tem maior ansiedade, amabilidade, neuroticismo (e maior neuroticismo implica em hipervigilância e sensibilidade aumentada a ameaças) e consciensiosidade que os homens — o que reflete diretamente nos estilos de liderança. 

Em geral, a liderança masculina é mais centrada na competitividade e na busca por status e poder. Isso é verificado tanto em sociedades modernas pós-industriais quanto em sociedades de caçadores-coletores, seja entre adultos, adolescentes ou crianças, em diferentes contextos, inclusive no mercado financeiro e em jogos esportivos. Essa competitividade implica em assumir riscos. Homens são mais aventureiros, tendem a pontuar mais alto em tarefas de alto risco, enquanto as mulheres geralmente pontuam mais alto em prevenção de dano. Elas se arriscam menos, inclusive no contexto econômico, e isso já explica a atitude dos líderes no combate a pandemia. Nesse sentido,os homens podem ser mais propensos a priorizar as metas econômicas imediatas, o status e a manutenção do status quo, enquanto as mulheres se empenham em tentativas de minimizar os riscos relacionados à saúde e cuidado para outras pessoas, uma vez que são mais orientadas para às pessoas e não, como os homens, às coisas.

O artigo faz uma longa discussão sobre as origens evolucionárias e desenvolvimentistas das diferenças sexuais, partindo das quatro causas de Tinbergen, um modelo etológico clássico que busca definir e explicar o comportamento animal e seus mecanismos psicobiológicos a partir de quatro níveis de análise.

Essas diferenças sexuais comportamentais surgem, em última análise, da seleção sexual, que também implica nas diferenças sexuais no cérebro humano. As mesmas diferenças a nível de seleção sexual e no investimento parental  moldaram a luta por status e a busca de poder entre os homens mais do que entre as mulheres, resultando em mais competição, comportamento agressivo e mais ousadia, em diferentes contextos, incluindo nas atividades econômicas arriscadas, estratégias políticas e esportes, o que explica também a maior quantidade de homens assumindo mais posições de liderança. Apesar de controverso, é aceito que a causa última dessa padrão surge do paradigma Darwin-Bateman:

As fêmeas férteis são um recurso limitante para a reprodução masculina o que geralmente leva a uma maior tomada de risco e busca de status em homens em relação às mulheres. A maior empatia das mulheres e a orientação para as pessoas, em contraste, podem ser impulsionadas por uma tendência materna evolutivamente antiga de cuidar dos filhos (Panksepp, 1998; Christov-Moore et al., 2014), interagindo com uma resposta de tendência e amizade ao estresse psicossocial. No entanto, deve-se notar que a rivalidade intra-sexual também existe nas mulheres (Fisher, 2017), particularmente na atratividade física e em contextos românticos (Rantala et al., 2019; Reynolds, 2021). No local de trabalho, homens e mulheres preferem competir intra-sexualmente em vez de intersexualmente, mas as mulheres tendem a ser mais hesitantes e calculistas em sua abordagem competitiva do que os homens (Kocum et al., 2017). Finalmente, entre os homens, o sucesso financeiro e a competição/sucesso de acasalamento estão correlacionados — nas mulheres, eles não estão correlacionados.

Kocum et al., 2017; ver também Luoto, 2019

Outro trecho que merece destaque aqui é uma crítica comum que as ciências evolutivas do comportamento normalmente recebem:

Embora alguns defendam a posição de que a socialização em papéis de gênero são a causa das diferenças sexuais em humanos, essa hipótese geralmente não é suportada quando se considera as evidências biológicas, de desenvolvimento, neurocientíficas e transnacionais de forma mais ampla (Christov-Moore et al., 2014; Schmitt, 2015; Janicke et al., 2016; Archer, 2019; Del Giudice, 2019; Luoto et al., 2019a; Liu et al., 2020; Stoet e Geary, 2020). Na verdade, a evidência internacional indica que em países com mais igualdade de gênero, as diferenças de sexo são de uma magnitude maior do que em países menos igualdade de gênero, o que é o oposto do que a hipótese do papel de gênero poderia prever (Schmitt et al., 2008; Falk e Hermle, 2018; Atari et al., 2020; Stoet e Geary, 2020; ver também Breda et al., 2020). Além disso, uma vez que os processos evolucionários antecedem as conceituações sociais dos papéis de gênero em vários milhões de anos, uma explicação completa da interação entre as concepções sociais dos papéis de gênero e as predisposições biológicas evoluídas precisaria dar conta de como os processos evolutivos agem como precursores dos papéis de gênero.

Janicke et al., 2016; Sweet-Cushman, 2016; Archer, 2019

Sobre a questão filogenética, os autores mencionam a sociedade dos bonobos (Pan paniscus), parentes vivos mais próximos dos humanos modernos, onde a liderança das fêmeas é caracterizada por interações sociais pacíficas, enquanto a liderança entre os chimpanzés (Pan troglodytes), devido à rivalidade entre machos, é mais agressiva e se parece com o tipo de liderança masculina entre humanos. Em relação aos mecanismos e à ontogenia, discute-se o papel dos hormônios sexuais na diferenciação cerebral e consequentemente na eliciação diferentemente no comportamento de ambos os sexos (veja na imagem abaixo). O cérebro é afetado pela exposição aos hormônios ainda na fase pré-natal, e diferenças sexuais normalmente refletem as diferenças de gênero. O papel do neurodesenvolvimento e socialização obviamente não é descartado nessa questão, mas normalmente são pouco significativos para o comportamento sexual em si. Os autores mencionam que o papel da socialização de mães para feminilizar as filhas, o que implica imposição de papéis de gênero, resulta em efeitos insignificantes — o que não é o caso do desenvolvimento social e da personalidade, que dependem fortemente do apego e de um cuidado parental seguro.

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Esquematização de como pré-disposições biológicas diferentes entre homens e mulheres interagem com as circunstâncias socioculturais e resultam em comportamentos diferentes. Retirado do artigo.

O artigo menciona ainda pesquisas sobre neurônios espelho e teoria da mente (TOM; theory of mind), um sistema neuronal que seria a origem da empatia social e uma função cognitiva fundamental para o cérebro social, respectivamente. Nesse aspecto, os resultados mostram que mulheres são mais bem sucedidas em avaliações de “teoria da mente” (inferir estados mentais dos outros) e têm mais ativação em áreas cerebrais associadas à função espelho; isto é, ativação comum de áreas sensório-motoras tanto ao observar a ação de outras pessoas ao redor quanto no executar as mesmas ações, uma propriedade importante para a empatia e imitação. Por fim, o estudo apresenta a hipótese de especialização sexualmente dimórfica em liderança e avalia as evidências que apontam para essa hipótese, com as devidas ressalvas. Destacamos aqui ipsis litteris e traduzidos os trechos mais importantes, com indícios da antropologia, neurociência e psicologia:

Dada a estabilidade, universalidade e continuidade filogenética dos traços típicos do sexo relevantes (Geary, 2010; Lonsdorf, 2017; Falk e Hermle, 2018; Archer, 2019) em que as diferenças de sexo na liderança são presumivelmente baseadas (Sweet-Cushman, 2016; Garfield et al., 2019b; Smith et al., 2020), evidências convergentes de caçadores-coletores e sociedades pós-industriais de grande escala tendem a apoiar a hipótese de especialização de liderança sexualmente dimórfica. […] Existem exemplos históricos de mulheres líderes indígenas americanas que salvaram vidas conectando assuntos tribais e programas de saúde pública contra doenças contagiosas, como a tuberculose (Trennert, 1998; Davies, 2001). De todos os papéis femininos indígenas, poucos são tão notáveis quanto a de curandeira/curandeira tradicional (Lajimodiere, 2013; Mji, 2019). Existem exemplos históricos dispersos de enfermeiras exercendo liderança significativa na resposta a crises de saúde (Schoch-Spana, 2001; Bristow, 2012; Knebel et al., 2012; Patterson, 2012; Fawole et al., 2016), embora também existam alguns casos de liderança do enfermeiro masculino.

Evans, 2004

Os Hadzas, em especial, como publicado em nossa página, é um “laboratório vivo de psicologia evolutiva”, entre eles os homens são melhores em habilidades espaciais do que as mulheres e as mulheres são melhores em memória topográfica; o risk taking (comportamento de risco) dos homens Hadza é maior do que o das mulheres mesmo na infância. Além disso, a força do tronco superior de um Hadza prevê reputação de caça e sucesso reprodutivo, exatamente o que esperaríamos de uma espécie sexualmente dimórfica.

“Evidências neurocientíficas apontam para áreas cerebrais distintas e antagônicas relacionadas a duas funções de liderança: a função de liderança orientada para a tarefa é atribuída à ativação da rede positiva para a tarefa, enquanto a função de liderança orientada socioemocionalmente depende mais da rede de modo padrão (Boyatzis et al., 2014). Essas especializações cerebrais e a supressão mútua de atividades relacionadas a diferentes estilos de liderança podem ser a base neurobiológica para a especialização sexualmente dimórfica em liderança. Existem até especificidades genéticas de cada estilo de liderança: a herdabilidade aditiva (o efeito de vários genes que exercem influência de forma linear ou aditiva) está mais relacionada ao estilo de liderança transacional, enquanto a herdabilidade não aditiva (efeitos interativos de diferentes alelos: dentro a dominância de locus e epistasia entre locus) está mais relacionada ao estilo de liderança transformacional.

Johnson et al., 1998

Os pesquisadores mencionam ainda estudos que relatou diferenças significativas entre os sexos na implementação de políticas públicas relacionadas à saúde, bem-estar social, meio ambiente e gastos militares. As forças evolutivas atuando no comportamento sexual podem acarretar até na formulação de políticas, carreiras e vocações, com pontos fortes em contextos de liderança previstos pela hipótese da liderança sexualmente dimórfica: “mulheres se concentrando mais em saúde, bem-estar, e a sociedade, e os homens se concentrando mais na agressão intergrupal, militar e econômica.” O que reflete na apenas na política, mas em todas as áreas profissionais e acadêmica, um assunto sensível que envolve papéis de gênero:

Evidências de escolhas ocupacionais mostram que cuidar da casa (94% mulheres), administração (75%) e saúde (70%) são as três carreiras principais com alta proporção de mulheres — e, mais importante, essas ocupações exigem o estilo cognitivo com viés empático mais elevado (Manning et al., 2010), bem como orientação de pessoas (Tay et al., 2019). Em contraste, profissões como administração geral e governo/militar (ambos 64% homens) e desenvolvimento de negócios (62% homens) favorecem indivíduos com estilos cognitivos de sistematização mais elevados (Manning et al., 2010; ver também Luoto, 2020) Padrões semelhantes são encontrados em publicações acadêmicas. As profissões de enfermagem e saúde favorecem estilos cognitivos empáticos e uma forte orientação para as pessoas, e possuem um alto grau de pesquisadoras/autoras. Campos acadêmicos com fortes requisitos de sistematização e alta orientação para as coisas, incluindo economia, tendem a ter uma proporção muito maior de pesquisadores do sexo masculino como autores.

Luoto, 2020

Não custa comparar alguns exemplos e verificar o ranking e situar o Brasil nesse contexto de diferenças comportamentais na condução da pandemia. O Lowy Institute, com em Sidney, na Austrália, analisou o desempenho de 98 nações perante o coronavírus. O Brasil de Bolsonaro ocupa o último lugar em termos de gestão da pandemia. Enquanto o presidente Jair Bolsonaro tratava a infecção por covid-19 como uma “gripezinha”, a premier neozelandesa Jacinda Ardern já estava atenta aos sinais do que viria ser a pandemia. O país fechou os voos da China, começaram a monitorar casos suspeitos; logo na sequência, começaram a importar testes, controlar aglomerações, publicaram decretos de subsídio trabalhista, medidas de emergência e muita informação sobre a Covid-19. Ao passo que Jair Bolsonaro e Donald Trump, então presidente dos Estados Unidos, seguiram negando a gravidade da pandemia, questionando a Organização Mundial de Saúde e incentivando o uso de tratamentos sem comprovação.

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Três dos piores líderes na condução da pandemia do Coronavírus: Jair Bolsonaro, Donald Trump e Ali Khamenei, Aiatolá da ditadura iraniana.

O mérito mais importante do artigo não é acirrar a competição sexual ou exaltar mulheres em detrimento de homens, mas chamar a atenção para uma gestão política que enfatize o cuidado, a empatia e o afeto para com as pessoas e as vítimas da pandemia ao lado das urgências e medidas econômicas. Nesse cenário, a psicologia feminina cumpre um papel fundamental que pode servir de inspiração para os gestores públicos. Também é importante mencionar que mesmo em países governados por mulheres, a presença masculina em setores estratégicos do governo também cumpre papéis que são orientados de acordo com adaptações masculinas e que devem ser conduzidos com responsabilidade e cuidado.

Nós finalizamos reafirmando a importância de um estudo como esse. Em primeiro lugar, lembramos que a abordagem das ciências evolutivas comportamentais em relação aos fenômenos políticos era incomum no âmbito das ciências psicológicas e humanas. Esse quadro está mudando rapidamente, como bem previsto por E.O Wilson, quem primeiro cunhou o termo “sociobiologia”, como uma base fundamental e metateórica do comportamento humano em todas as suas dimensões, sejam estas sociais, ecológicas, econômicas, políticas, psiquiátricas, estéticas ou religiosas. Observamos que o fenômeno político de liderança que os autores do artigo estudaram é de extremo interesse público, social e científico, já que está dentro do contexto da infecção por coronavírus, algo que afetou e afeta a população humana em escala global. As mulheres têm uma gestão mais ponderada e centrada nos anseios das pessoas, como apontado, e esse é um belo exemplo de como as ciências evolutivas comportamentais, ao contrário do que comumente se imagina, estão longe de atuar como um meio de “afirmar preconceitos e discriminação machistas”.

Este artigo apareceu primeiro em Etologia & Sociobiologia.

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