Marco Aurélio diante da morte

Donato Ferrara
Tendo Cômodo à mão esquerda, Marco Aurélio diz as últimas palavras em tela de Delacroix (1798-1863).

O período compreendido entre 161 e 180 foi dos mais atribulados da história romana. Marco Aurélio, assumindo o trono depois da morte de Antonino Pio, em 7 de março, herdou do pai adotivo um império com problemas administrativos advindos de seu gigantismo e assediado por povos estrangeiros em muitas fronteiras. Para a tarefa de governar, ele fez-se coroar ao lado de Lúcio Vero, seu irmão por adoção, o qual viveu até 169. Pensando apenas nos episódios militares de maior relevo, em muitos dos quais Marco Aurélio tomou parte pessoalmente, vemos que houve guerras contra os partos entre 161 e 166, problemas com os germânicos de 167 em diante, batalhas contra os marcomanos a partir de 168 — estes chegaram às portas da Itália, junto com os quados, dois anos depois, e só foram derrotados em 172. O soberano de Roma ainda teve de medir-se com os iáziges nômades em 174, além de garantir a pacificação de suas tropas orientais quando Avídio Cássio, seu principal general, tentou rebelar-se e tomar o poder, sendo morto em 175. O império também foi sacudido por calamidades, como uma grande inundação do Tibre por volta de 162, surtos de peste que se sucederam entre 165 e 180, havendo, de mais a mais, terremotos na cidade de Esmirna (Ásia Menor) em 178.

Sua vida pessoal jamais lhe proporcionou qualquer espécie de consolo ou refrigério. Dos treze filhos que teve, somente cinco vingaram: quatro mulheres e um homem. Este, que se chamou Lúcio Aurélio Cômodo Antonino, foi escolhido desde tenra idade para suceder ao pai à frente do império, mas seu caráter nunca esteve à altura das expectativas que nele se depositaram. Essa disparidade de temperamento notada entre pai e filho talvez explique uma série de rumores que, correndo à boca pequena desde aquela época, incriminavam a imperatriz Faustina. Dizia-se, por exemplo, que ela teria uma predileção por gladiadores, e suspeitava-se de que Cômodo, fascinado pelas lutas no circo, fosse fruto de algum de seus adultérios. Não é impossível que essas murmurações tenham chegado ao conhecimento do imperador; seja como for, ele jamais repudiou a esposa, embora fosse um pater-familias romano e o homem mais poderoso do mundo.

Estoico, Marco Aurélio pensava continuamente na transitoriedade da vida e na inevitabilidade da morte. Para os antigos, filosofar era — como retomou e resumiu Michel de Montaigne, séculos depois — aprender a morrer. Escrevendo a si mesmo, o imperador-filósofo exercitava seu senso de realidade quanto à condição humana, agudo a ponto de descer a detalhes nauseantes, rememorando o que já havia sucedido a tantos sábios e potentados do passado. Eis uma passagem bastante típica do modo como ele encarava a questão:

Hipócrates, depois de curar muitos enfermos, por sua vez adoeceu e morreu. Os caldeus predisseram a morte de muitos, mas logo foram eles próprios, por seu turno, pilhados pelo destino. Alexandre, Pompeu, Caio César, que tantas vezes arrasaram de cima a baixo cidades inteiras, que em batalha retalharam dezenas de milhares de cavaleiros e peões, partiram, também eles, da vida. Heráclito, que tanto refletiu acerca da conflagração do universo, morreu com o ventre inchado de água e todo recoberto de estrume. Demócrito foi vitimado por vermina, assim como outra vermina vitimou Sócrates. Que isso quer dizer? Você embarcou, navegou, chegou ao porto: vá embora. Se for na direção de outra vida, ali também não faltarão deuses; se for no rumo de um estado de insensibilidade, você deixará de suportar as dores e os prazeres, e de ser servo de um invólucro que é tanto mais inferior quanto a parte que o serve é superior; pois que esta é inteligência e divindade, ao passo que aquele é terra e sangue impuro. (Meditações, III, 3)

Na meditação que acabamos de ler, vemos que não somente o conhecimento histórico do imperador estava subordinado a um propósito ético (por maiores que tenham sido as glórias dos homens do passado, eles não deixaram de ter o destino que cabe ao comum dos mortais), como também tal propósito não se alterava, na visão dele, perante a possibilidade de vida após a morte. Havendo ou não a sobrevivência da “parte superior” (a qual, para os estoicos, também era matéria) depois da falência do resto do corpo, as responsabilidades do praticante da filosofia permaneciam as mesmas: eram, nas palavras sintéticas de Epicteto, procurar demonstrar-se digno de fé (pistós), modesto (aidḗmōn), nobre (gennaîos), sem perturbações (atáraktos) a todo momento (cf. Diatribes, II, 8: 26-27).

Por meio dos “exercícios espirituais” que são as suas Meditações, o imperador-filósofo instilava dentro de si a noção de que a morte era um fenômeno natural. O estoico que se habitua radicalmente à sua realidade de mortal é capaz de mitigar — se não suprimir — seus temores egoístas nos momentos derradeiros, ficando livre para portar-se com nobreza e generosidade para com os demais. É uma atitude assim que depreendemos dos relatos, por vezes discordantes, dos historiadores que se ocuparam dos últimos atos de Marco Aurélio Antonino.

Herodiano (175-249), abrindo sua História do Império a partir da morte de Marco Aurélio em oito livros com os últimos dias de Marco Aurélio, relata que o imperador adoeceu enquanto estava na Panônia (província delimitada pelo Danúbio a nordeste), provavelmente a pique de envolver-se em nova campanha contra os bárbaros. Segundo algumas fontes, a cena se teria dado em Vindobona (atual Viena), segundo outras na cidade de Sirmium (a Sremska Mitrovica do presente, na Sérvia). Eis o que Herodiano nos diz:

Marco Aurélio estava já velho e abatido, não somente pela idade, mas ainda mais pelos afãs e preocupações, quando ficou gravemente enfermo em uma estada na Panônia. Pressentindo que não tinha muita esperança de recuperar-se e vendo o filho muito moço, temeu que este deixasse de lado os bons estudos e as boas ocupações para dar-se à embriaguez e à licenciosidade, uma vez tendo nas mãos, depois da morte do pai, um poder sem limites nem freio. Pois o espírito dos jovens, inclinado aos prazeres, desvia-se muito facilmente dos primores da educação.

Este homem de cultura inquietava-se também pela lembrança dos que se tinham tornado soberanos quando jovens: fosse a de Dionísio, o tirano da Sicília, o qual, em sua intemperança extrema, buscava novos prazeres a preço de ouro, fosse a dos sucessores de Alexandre, os quais, por seus excessos e violências contra os súditos, trouxeram a desgraça a seu império. (Herodiano, História do Império, I, 3: 1-2)

E depois de mencionar outros exemplos, distantes (Ptolomeu, Antígono) e recentes (Nero, Domiciano), de líderes que manifestaram suas propensões tirânicas desde a juventude e que estariam nos pensamentos do debilitado Marco Aurélio, Herodiano cita ainda a preocupação do imperador relativamente aos bárbaros. Aqueles habitantes de além-Danúbio, que não se tinham dobrado de todo nem por força dos talentos militares e diplomáticos do pai, não respeitariam decerto um príncipe tão moço. A narrativa prossegue, devassando a psicologia do imperador agonizante:

Em meio a preocupações que, como uma vaga, agitavam-se no mais profundo de si, Marco Aurélio convocou os amigos e próximos. Todos reunidos, ele, pondo o filho a seu lado, levantou-se um pouco do leito e dirigiu-se aos presentes assim:

“Não me surpreende que vocês estejam aflitos de ver-me nestas condições. Os homens são naturalmente conduzidos à piedade quando seus semelhantes conhecem tribulações, e as infelicidades que lhes ocorrem diante dos olhos aumentam sua comiseração. Penso, no entanto, que uma afeição ainda maior exista entre vocês e mim: tendo em vista as disposições que tive a respeito de todos, tenho boas razões de esperar uma simpatia recíproca, da parte de vocês. E este é o momento propício para que eu constate que não foram em vão os sinais de honra e de estima que lhes prodigalizei durante tanto tempo, e para que vocês me retribuam tais favores, demonstrando que não esqueceram os benefícios que de mim receberam. Meu filho, este filho que vocês mesmos educaram, aproxima-se agora da primeira juventude, como bem o veem; ele necessita, nessa temporada tormentosa à sua frente, de pilotos que o governem, a fim de que, arrastado por uma falta de conhecimento acerca de seus deveres, ele não incorra em práticas detestáveis. Vocês, portanto, em conjunto tomem meu lugar como pai, cuidando dele e dando-lhe conselhos prudentes. Não há riquezas, por mais abundantes, que satisfaçam os excessos de um tirano, nem há proteção de guarda-costas que baste para salvar um soberano que não tem a simpatia de seus súditos. Os governantes que permaneceram no poder por muito tempo sem correr perigo foram especialmente aqueles que instilaram no coração de seus súditos não o medo que resulta da crueldade, mas o amor pela bondade régia. Pois não são aqueles que se submetem por necessidade, mas os que são persuadidos a obedecer, quem continua a servir e a sofrer sem suspeitas e sem adulações mentirosas. E estes nunca se rebelam, a menos que sejam levados a isso pela violência e pela arrogância. Quando um homem tem poder absoluto, é-lhe difícil moderar-se e pôr limites aos desejos. Porém, se vocês derem a meu filho os conselhos certos nesses assuntos e o lembrarem frequentemente o que se disse aqui, vocês o tornarão o melhor dos imperadores, para vocês próprios e para todos, e farão o maior dos tributos à minha memória. Apenas nestas condições é que vocês poderão torná-la eterna.”

Marco Aurélio não disse mais nada: foi tomado de um desfalecimento e caiu de volta no leito, enfraquecido e abatido. Todos os que estavam presentes dele se compadeceram, e alguns chegaram a gritar de desespero, incapazes de controlar-se. Depois de viver ainda uma noite e um dia, morreu, deixando a seus contemporâneos um legado de pesares e à posteridade a lembrança eterna de sua virtude. (idem, 4: 1-6)

Na História Augusta, obra coletiva redigida entre os reinados de Diocleciano e Constantino, dá-se uma versão razoavelmente diferente para a morte do imperador. Estão aí as preocupações com o filho e o futuro de Roma, mas não há menção ao discurso transcrito por Herodiano. Surge a imagem de um imperador mais lacônico e resignado, rindo-se das coisas humanas (ridens res humanas) e tomando em desprezo a própria vida (mortem autem contempnens):

Eis como Marco Antonino morreu. Quando ele começou a sofrer, convocou o filho e recomendou-lhe, de início, que não negligenciasse o que ainda havia de guerra, por temer que este fosse visto como indiferente à coisa pública. E quando seu filho respondeu que desejava, antes de tudo, a boa saúde [do pai?], o pai lhe disse que agisse como bem entendesse, apenas pedindo-lhe que esperasse alguns dias e não partisse de imediato. Então, ansiando morrer, ele se absteve de comer e beber, agravando assim a doença. No sexto dia, convocou seus amigos e, em derrisão das coisas humanas e tomando em desprezo a morte, disse-lhe: “Por que vocês choram por mim, em vez de pensarem na peste e na morte que nos é comum a todos?”. E ao ver que eles se retiravam, disse-lhes com um gemido: “Visto que vocês já me deram a dispensa, dou-lhes ‘adeus’ e vou-me antes de vocês”. Quando indagado a quem recomendava o seu filho, respondeu: “A vocês, se ele de tal for digno, e aos deuses imortais”. O exército, quando recebeu a notícia de sua doença, lamentou-se vivamente, pois que as tropas o amavam de modo singular. No sétimo dia, agravou-se o seu estado, e ele admitiu ao pé de si somente o filho, logo dispensando-o por temor de que contraísse a doença. Com a partida do filho, ele cobriu a cabeça como que para dormir, mas durante a noite expeliu a alma. Diz-se que ele desejou que o filho morresse, antevendo que este se tornaria aquilo que de fato foi após a morte do pai, e temendo, como ele próprio o dissera, que o jovem se assemelhasse a Nero, a Calígula, a Domiciano. (História Augusta: Marco Aurélio Antonino, XXVIII)

Marco Aurélio expirou em 17 de março de 180. Cômodo foi, como se sabe, um imperador dissoluto e estroina, em nenhum modo parecido com o pai. De modo contrastante, este foi lembrado como um príncipe de grandes qualidades morais e políticas, capaz de manter o império unido em uma era de dificuldades. O contemporâneo Dião Cássio (ca. 155-235) fala da morte de Marco Aurélio (a qual ele atribui a uma trama de Cômodo com os médicos) e faz-lhe um elogio póstumo:

Quando ele estava prestes a morrer, recomendou o filho à proteção dos soldados (porque não desejava que sua morte parecesse obra de Cômodo), e ao tribuno militar que lhe pediu a senha, disse: “Vá em direção ao sol que nasce, pois eu me aproximo de meu poente”. (…) Que toda sua conduta se originava não do fingimento, mas da virtude, é coisa evidente: pois, durante os cinquenta e oito anos, dois meses e vinte e dois dias que viveu, dos quais uma parte considerável se deu enquanto foi assistente do primeiro Antonino, tendo sido, além do mais, por si só imperador por dezenove anos e onze dias, ele continuou igual a si mesmo e não se desmentiu a si nem um pouco. Tão verdadeiro é que ele foi um homem virtuoso e desprovido de todo fingimento. (Dião Cássio, História Romana, LXXI, 34)

Como última nota, prestemos atenção a esta bela frase: “Vá em direção do sol que nasce, pois eu me aproximo de meu poente”. O imperador-filósofo estava imbuído da consciência de que morria, mas a vida continuava — pois tudo é cíclico. 

Meditemos, portanto, como o próprio Marco Aurélio, nessas coisas. O poente não tarda.

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