Conheça a história por trás do mito da Maria Sangrenta

Adriana Tinoco

A lenda da Maria Sangrenta, como se conhece hoje, é originária dos Estados Unidos do século XX. Conhecida por lá como “Bloody Mary”, existem diversas versões desta lenda urbana, mas todas têm em comum a morte trágica de uma mulher chamada Mary. Em uma das versões, diz-se que Mary foi assassinada por motivos passionais; já em uma outra, a jovem teria sofrido com os horrores da Segunda Grande Guerra. Em comum, todas afirmam que, caso alguém repita “Bloody Mary” três vezes diante de um espelho, uma mulher ensanguentada aparecerá.  

Lendas urbanas que fazem referência a aparições em espelhos são comuns em diversas partes do mundo, mas a expressão “Maria Sangrenta” surgiu muito antes do conto de horror. Esta expressão originalmente se referia a rainha inglesa Maria I, da dinastia Tudor, cujo reinado foi marcado por perseguições religiosas. Por ser tida como uma líder sádica, Maria I ficou conhecida como “Maria sangrenta”.

Retrato de Maria I , da Inglaterra, a monarca que ficou conhecida como Maria Sangrenta, óleo sobre painel de carvalho pintado em 1554 por Hans Eworth. (Domínio público)
Retrato de Maria I , da Inglaterra, a monarca que ficou conhecida como Maria Sangrenta, óleo sobre painel de carvalho pintado em 1554 por Hans Eworth. (Domínio público)

No entanto, de acordo com historiadores, a história de Maria I vai além da suposta perversidade da rainha. A primeira mulher a governar a Inglaterra não herdou o trono, ela tomou o poder, com uma estratégia ousada e poucas chances de sucesso. Mas, por que, séculos depois, a rainha Tudor é lembrada apenas como uma déspota violenta?

Maria I: princesa, filha preterida e rainha

Nascida em 18 de fevereiro de 1516, Maria foi a única filha de Henrique VIII e Catarina de Aragão a sobreviver à infância. Contudo, Henrique era obcecado por ter um filho homem e não estava satisfeito.

Sendo assim, para se divorciar de Catarina e se casar com a amante Ana Bolena, o rei rompeu com a Igreja Católica e fundou a Anglicana. Catarina não aceitou o divórcio, sendo condenada a viver em exílio, separada da filha. 

Porém, Ana Bolena deu à luz a outra menina: Elizabeth, sendo também descartada por Henrique VIII.  Acusada de adultério, incesto e traição, Bolena foi condenada à morte por decapitação.

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Enquanto isso, Maria havia sido declarada ilegítima e, portanto, ficara de fora da linha sucessória do trono inglês. A jovem se recusava a reconhecer a validade do divórcio de seus pais ou o status de Henrique como chefe da Igreja da Inglaterra. 

Foi somente em 1536, após a execução de Ana Bolena e o casamento de Henrique com Joana Seymour, que Maria retornou à corte inglesa.

Quem fica com o trono?

Maria I sobreviveu a Henrique VIII e cinco madrastas (Ana Bolena, Joana Seymour, Ana de Cleves, Catarina Howard e Catarina Parr).  Mas, quem assumiu o trono após a morte de seu pai foi Eduardo VI, filho de Joana e único filho homem do rei. 

Eduardo foi o terceiro monarca da Casa de Tudor e o primeiro rei inglês criado como protestante. Contudo, Eduardo VI nunca chegou a realmente governar, pois não atingiu a maioridade. Durante seu reinado, o país foi comandado pelo Conselho Regencial.

Quando Eduardo adoeceu, ele e seu conselho tentaram evitar o retorno do catolicismo. O plano era deixar a coroa inglesa para a prima protestante, Joana Gray. Esse arranjo excluía Maria e sua meia-irmã mais nova, Elizabeth, da linha sucessória. Embora Maria pudesse ter buscado refúgio com familiares em outros países europeus, ela optou por permanecer na Inglaterra e lutar pelo trono.

Vale lembrar que a vontade do rei Henrique VIII não faria o catolicismo simplesmente desaparecer;  muitos ingleses levaram anos para renunciar à fé católica e, durante esse período de transição, muitos apoiaram a causa de Maria. Dessa forma, com o apoio de parte da nobreza, ela marchou em Londres. Maria e Elizabeth foram à capital da Inglaterra lado a lado, uma como rainha e a outra como rainha em espera.

Como surgiu a reputação de Maria sangrenta

Durante seu reinado de cinco anos, Maria I criou precedentes e estabeleceu as bases para a reforma financeira, exploração e expansão naval, que seriam construídas por sua sucessora, Elizabeth I. Contudo, ela enfrentou os múltiplos desafios associados ao seu status de primeira rainha inglesa a usar a coroa por direito próprio, e não como esposa de um rei.

Maria I priorizou a religião acima de tudo, restaurando o poder da Igreja Católica na Inglaterra e tornando o protestantismo proíbido. Como resultado dessa perseguição religiosa, ordenou que 280 protestantes fossem queimados na fogueira como hereges, um fato que ajudaria a consolidar sua reputação de "Maria sangrenta". Imagem: Detalhe de uma ilustração do "Livro dos Mártires" de John Fox, representando os preparativos antes da queima na fogueira de Hugh Latimer e Nicholas Ridley.
Maria I priorizou a religião acima de tudo, restaurando o poder da Igreja Católica na Inglaterra e tornando o protestantismo proíbido. Como resultado dessa perseguição religiosa, ordenou que 280 protestantes fossem queimados na fogueira como hereges, um fato que ajudaria a consolidar sua reputação de “Maria sangrenta”. Imagem: Detalhe de uma ilustração do “Livro dos Mártires” de John Fox, representando os preparativos antes da queima na fogueira de Hugh Latimer e Nicholas Ridley. (Domínio Público)

Maria I priorizou a religião acima de tudo, implementando reformas e restrições destinadas a restaurar o poder da Igreja Católica na Inglaterra. Ela retomou as relações com Roma, desfez as medidas de seu pai e tornou o protestantismo proíbido. Como resultado dessa perseguição religiosa, ordenou que 280 protestantes fossem queimados na fogueira como hereges, um fato que ajudaria a consolidar sua reputação de “Maria sangrenta”.

A Derrocada da Maria sangrenta

Apesar da postura implacável, Maria I não assegurou o trono por muito tempo. Desejando estreitar laços com a terra natal de sua mãe, que era uma grande potência na época, a rainha anunciou que se casaria com o príncipe Felipe, filho de Carlos V e futuro Rei Felipe II da Espanha.

O noivado não agradou ao povo inglês, que temia por sua soberania. Por conta disso, um acordo pré-nupcial foi firmado, garantindo que o príncipe da Espanha não interferiria nas decisões da Coroa inglesa e que Maria teria todo poder de governança sobre a Inglaterra.

Entretanto, o acordo não foi suficiente para convencer a população. Em 1554, no Condado de Kent, explodiu a Revolta de Wyatt, liderada pelo nobre Thomas Wyatt Filho. Thomas foi criado como um católico, mas, conta-se que se tornou inimigo dos espanhóis após testemunhar as atividades da Inquisição ao acompanhar seu pai em uma missão à Espanha. O objetivo dos revoltosos era depor a Maria I e colocar em seu lugar a princesa Elizabeth, que era protestante.

Maria I ainda contava, principalmente, com o apoio da população católica. Dessa forma, aniquilou os revoltosos e mandou prender Elizabeth, que jurou inocência. Sem ter provas de que a irmã participou da conspiração, a Rainha concedeu-lhe a liberdade. 

Princesa Elizabeth Tudor, a futura Elizabeth I, de William Scrots (1546). Maria, apesar das consideráveis ​​diferenças ideológicas com a irmã, a respeitava e a nomeava como sucessora do trono.
Princesa Elizabeth Tudor, a futura Elizabeth I, de William Scrots (1546). Maria, apesar das consideráveis ​​diferenças ideológicas com a irmã, a respeitava e a nomeava como sucessora do trono. (Domínio Público)

Casamento sem herdeiros

Maria I teve sucesso em manter o poder pela força, mas não conseguiu produzir um herdeiro. Seu casamento com Felipe II tinha fins políticos, e este não parecia se empenhar muito.  Ele chegou a viver em Londres, mas tinha pouca simpatia pela Inglaterra.

Em 1555, Felipe partiu para os Países Baixos, cujo governo seu pai Carlos V lhe cedeu, como lhe cedera, um ano antes, o governo de Nápoles e da Sicília. Em 1556, assumiu o trono espanhol, após seu pai abdicar. Felipe só retornaria à Inglaterra, brevemente, em 1557.

A rainha passou por duas gravidezes psicológicas, uma em 1554 e outra em 1557, o que a fez ser ridicularizada na Europa, tornando o reinado de Elizabeth iminente. No entanto, Maria só veio reconhecer a irmã como sucessora dias antes de sua morte, em 1558. Câncer uterino ou cistos nos ovários são  apontados por historiadores como as causas mais prováveis de sua morte.

Retrato de Maria I, da Inglaterra --que ficou conhecida como Maria Sangrenta -- e seu marido Filipe II da Espanha. O casal viveu sozinho por cerca de 15 meses. Hans Eworth. (Wikimedia Commons)
Retrato de Maria I, da Inglaterra –que ficou conhecida como Maria Sangrenta — e seu marido Filipe II da Espanha. O casal viveu sozinho por cerca de 15 meses. Hans Eworth. (Wikimedia Commons)

O título de Maria sanguinária é justo?

De acordo com Linda Porter, autora de O mito de “Bloody Mary”, a perseguição aos protestantes e suas sentenças à fogueira mitificaram Maria I como uma tirana ensandecida. Estes atos, sem dúvidas, são terríveis e demonstram que a rainha não era, obviamente, nenhuma pacifista. Contudo, a Inglaterra da época era brutal e punições sangrentas, com decapitações, esquartejamentos e fogueira, eram a norma, não exclusividade do reinado de Maria I.

Durante o início do período moderno, católicos e protestantes acreditavam que a “heresia” justificava a sentença pesada. A vítima mais famosa de Maria I, o arcebispo Thomas Cranmer, estava se preparando para aprovar políticas semelhantes contra os católicos, antes de ser marginalizado pela morte de Eduardo VI. 

Para a mente do século XVI, a heresia era um contágio que ameaçava não apenas a igreja, mas também a estabilidade da sociedade como um todo. Os hereges também eram considerados culpados de traição, pois questionar as políticas religiosas estabelecidas por um monarca era equivalente a rejeitar sua autoridade divinamente ordenada. 

Considere ainda: estimativas apontam que Henrique VIII ordenou a morte de 57.000 a 72.000 de seus súditos, incluindo duas de suas esposas. Eduardo VI teve dois anabatistas (a chamada “ala radical” do Protestantismo.) queimados na fogueira durante seu reinado de seis anos; em 1549, ele sancionou a supressão da rebelião do livro de orações, resultando na morte de até 5.500 católicos. A sucessora de Maria, Elizabeth I, queimou cinco anabatistas na estaca durante seu reinado; ordenou a execução de cerca de 800 rebeldes católicos, implicados na revolta dos condes do norte de 1569; e tinha pelo menos 183 católicos, a maioria dos quais eram missionários jesuítas, enforcados ou esquartejados como traidores.

Se os números são o principal raciocínio por trás do apelido “Maria sangrenta”, então por que os outros  membros da família de Maria I não são chamados sanguinários?”. Este é um questionamento complexo, sem uma resposta fácil.

Papel da misoginia na construção do mito da Maria sangrenta

Como primeira rainha da Inglaterra, Maria I enfrentou o mesmo desafio enfrentado pelas governantes do mundo todo, com o bônus da falta de fé de seus conselheiros e súditos na capacidade de governar das mulheres. 

A historiadora Lucy Wooding afirma que as descrições de Maria I tendem a ter tons misóginos, sendo simultaneamente apontada como “vingativa e feroz” e “covarde e fraca”. A maioria dos especialistas concorda que o casamento com Felipe da Espanha teve um efeito negativo na reputação de Maria I, que passou a ser pintada como uma mulher apaixonada e de vontade fraca, que colocou o amor terreno à frente do bem-estar de seu país. 

Rejeição ao catolicismo

Embora o gênero de Maria tenha tido um papel central na formação de sua imagem, o fator mais importante para a permanência do apelido de “Maria sangrenta” foi o surgimento de uma identidade nacional construída sobre a rejeição de Catolicismo. 

Um livro de 1563 de John Foxe, conhecido popularmente como Livro dos Mártires de Foxe, desempenhou um papel fundamental na criação dessa identidade protestante, detalhando os tormentos sofridos por homens e mulheres queimados nas fogueira de Maria I.

Porter argumenta que as queimadas de rainha poderiam ter se tornado uma “mera nota de rodapé da história”, se não fosse a intervenção de John Foxe. O historiador O.T, Hargrave , no entanto, discorda, descrevendo a perseguição como “sem precedentes”. 

De qualquer maneira, depois de assumir o trono, Elizabeth I teve o cuidado de não replicar as políticas religiosas de sua irmã. A historiadora Judith Richards observa que, para  proteger a reputação de Elizabeth, revoltosos que tentavam restabelecer o Catolicismo eram executados como traidores da Coroa, não queimados como hereges. 

Maria I era  indubitavelmente falha, mas também era o produto de seu tempo, tão incompreensível para as mentes contemporâneas quanto o mundo atual seria para ela.

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