A parceria aeroespacial Brasil-Ucrânia que custou R$ 1 bilhão e acabou sem resultado algum

A ACS, que hoje entrou para a história, envolvia a troca de tecnologia entre Brasil e Ucrânia e deveria lançar um foguete em 2010.

Felipe Miranda
Foguete Cyclone-4.

Em 2003 inicia-se a criação de uma empresa com uma missão muito especial. Em 2006 é constituída a empresa binacional de capital público (brasileiro e ucraniano) chamada de Alcântara Cyclone Space (ACS). A empresa possuía, como objetivo, criar no Brasil, com uma troca de tecnologia espacial com a Ucrânia, um mercado de comercialização e lançamentos de satélites a partir do CLA (Centro de Lançamento de Alcântara), no Maranhão. A Ucrânia havia ficado com muito conhecimento e tecnologia dos soviéticos após a dissolução do grupo, já que era membro da União Soviética.

A Socientífica já falou, anteriormente, sobre o péssimo estado que segue o programa espacial brasileiro. Estamos tão empacados simplesmente pela falta de recursos. Na década de 1960, iniciamos o desenvolvimento de nosso programa espacial, e estávamos no mesmo patamar que outros países emergentes em pontos semelhantes, como Índia e China. Mas hoje estamos muito mais atrasados do que nossos amigos.

Em 2003 a China lançava seu primeiro astronauta. Também em 2003, o Brasil tentava lançar o que seria um grande marco: o VLS (Veículo Lançador de Satélites) com dois satélites. No entanto, uma explosão ocorreu por problemas decorrentes da falta de verba que o programa enfrentava. 21 pessoas morreram com a explosão do foguete, ainda na base de lançamento. Isso ocasionou ainda mais um desânimo que veio a revisar e extinguir o projeto em 2016.

Tá, 2003 foi o início do longo fim do VLS, um projeto que poderia alavancar o Brasil na corrida espacial e dar maior autonomia para nosso país em nosso importantíssimo programa espacial. No entanto, ainda havia o projeto Cyclone. Mas como sabemos hoje, ele também não voou. Em 2019 o Senado brasileiro extinguiu oficialmente a binacional responsável pelo desenvolvimento do projeto Cyclone. Uma Medida Provisória do então presidente Michel Temer já havia realizado a extinção da empresa.

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VLS. Imagem: Reprodução

Alcântara Cyclone Space (ACS)

A Alcântara Cyclone Space nasceu com a missão de colocar no mundo dos países desenvolvidos dois países emergentes, fortes candidatos à potências globais. O Brasil possuía uma excelente base de lançamento, com uma localização privilegiada. A Ucrânia, por sua vez, dominava a tecnologia espacial, mas não tinha um bom lugar para lançar seus foguetes, até porque as relações com a Rússia não iam nada bem (nem vão bem até os dias de hoje, como vemos pela guerra na Ucrânia).

“Países com programa espacial completo não têm interesse em desenvolver programas com o Brasil, porque já são independentes, como EUA, França e Rússia. Dois países só cooperam de forma realmente parceira quando um tem interesse no outro. Interesse que não seja exclusivamente comercial, mas de desenvolvimento conjunto. Os dois países tinham o que oferecer um ao outro”, disse Sérgio Rezende, professor da UFPE e ministro da Ciência e Tecnologia durante o governo Lula, conforme a CNN.

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Concepção artística do Cyclone-4. (Imagem: ACS / Divulgação).

Inicialmente, as operações deveriam se iniciar em 2010, mas isso nunca ocorreu.

A situação começou a desandar quando cada país sentiu dificuldades em cumprir o acordo inicial. Ambos os países deveriam investir 1 bilhão de dólares na empresa. No entanto, o real passou por uma desvalorização e houve uma crise diplomática nas relações Ucrânia-Rússia, quando a Crimeia, que era parte do território ucraniano, foi invadida pelos russos.

Fragilidades e polêmicas

Em 2015, a então presidente Dilma Rousseff denunciou o contrato por um “desequilíbrio na equação tecnológico-comercial” por meio de um decreto. A pedido do Congresso, o Tribunal de Contas da União (TCU) investigou o caso. O Brasil estava gastando grandes montantes de dinheiro sem retorno algum. Ao todo, foi gasto pelo Brasil meio bilhão de reais.

Logo, uma suspeita de que os foguetes ucranianos estavam utilizando peças dos Estados Unidos foi levantada. No entanto, um acordo de salvaguardas tecnológicas nunca foi para a frente para possibilitar esse uso. Além disso, o TCU desconfiou que com os conflitos entre Ucrânia e Rússia, o país não conseguiria cooperar no projeto. O relatório completo pode ser acessado clicando aqui.

O fim de fato da empresa ocorreu em 2019, junto a uma assinatura de um acordo de Salvaguardas entre Brasil e Estados Unidos pelo presidente Jair Bolsonaro para permitir uma comercialização da Base de Alcântara. O projeto, porém, não prevê uma troca de tecnologia. A assinatura, entretanto, foi polêmica, pois muito argumentaram que ela iria ferir a soberania nacional, muito embora, isso não necessariamente ocorrerá. Essa polêmica ocorreu, pois, no ano de 2000, um acordo de Salvaguarda com os EUA já havia sido rejeitado pelo Congresso Nacional, pois o entendimento do órgão foi de que o acordo iria ferir a soberania do país, dada as cláusulas impostas na época.

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Vista aérea do Centro de Lançamento de Alcântara.

Sabotagem dos americanos?

Obviamente, os Estados Unidos não quiseram incluir a troca de tecnologias no acordo porque, como potência global, eles simplesmente não querem que novos países desenvolvam tecnologia de foguetes. Entretanto, especialistas argumentam que a comercialização da base pode trazer, ao Brasil, dinheiro para reinvestir em nosso programa espacial.

Nas investigações do projeto da ACS, foram levantadas várias fragilidades, e o Ministério Público Federal recomendou que houvesse “maior qualidade na avaliação dos aspectos técnico-financeiros na formalização de atos dessa natureza”.

No entanto, a Ucrânia e alguns brasileiros, como o ex-ministro Rezende, acreditam que o projeto deveria ter sido continuado, argumentando que os Estados Unidos sabotaram o projeto. Em 2011, o WikiLeaks vazou um telegrama ocorrido entre o Departamento de Estado dos EUA e a embaixada estadunidense em Brasília. O documento revelava que os Estados Unidos não se opunham ao lançamento de foguetes Ucranianos na base de Alcântara, desde que isso não envolvesse troca tecnológica entre Brasil e Ucrânia.

“Queremos lembrar às autoridades ucranianas que os EUA não se opõem ao estabelecimento de uma plataforma de lançamentos em Alcântara, contanto que tal atividade não resulte na transferência de tecnologias de foguetes ao Brasil”, diz o documento vazado, segundo o jornal o Globo. O documento, que continha uma mensagem a ser repassada, pela embaixada americana à embaixada ucraniana em Brasília. A mensagem deixava claro que “[Os Estados Unidos] não apoiamos o programa nativo dos veículos de lançamento espacial do Brasil”.

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Os tímidos foguetes brasileiros. Imagem: Revista Fapesp

Esse vazamento levantou um grande debate sobre se a Alcântara Cyclone Space acabou nessa situação por uma sabotagem dos Estados Unidos. Embora haja provas dos descontentamentos do governo americano com o projeto, não há provas de sabotagem. Da mesma forma, as argumentações de que a explosão do VLS ocorreu por uma sabotagem dos americanos cresceu. Há fatores (crise, guerra) que explicam o fim da ACS, assim como há fatores (falta de verba, sucateamento) que expliquem o fim do projeto VLS.

Hoje, o Brasil possui um tímido projeto de desenvolvimento de foguetes próprios, embora já tenhamos a tecnologia de fabricação de satélites. Cabe, agora, realizar um bom aproveitamento dos investimentos recebidos através da futura comercialização do CLA permitida pelo acordo de Salvaguardas entre o Brasil e os EUA, para o desenvolvimento de nossa própria tecnologia, mas desta vez, de uma maneira mais eficiente e que os investimentos forneçam resultados.

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