Outro dia um amigo me indagou: Como é possível haver pessoas negando a realidade da pandemia? Refleti rapidamente sobre o tema e respondi que, na verdade, o animal humano tem problemas para acessar o real, tem problemas para conhecer a realidade e interconectar seu conhecimento sobre ela.
O estoicismo é, na verdade, uma filosofia que tem como proposta justamente conectar e harmonizar o animal humano com o Cosmos, uma ferramenta para ajudar o humano a acessar o real.
Os humanos, que ninguém se engane, têm um sério problema para acessar a realidade, por razões psicológicas, morais, lógicas e epistemológicas. Os humanos não nascem feitos, mas precisam ser complementados com a educação, têm que ser cultivados para estabelecerem uma relação harmoniosa consigo mesmos, com os demais seres vivos e com a Natureza em geral. O estoicismo se propõe a educar os humanos nessas dimensões moral, lógica e epistemológica (são, de fato, as três parte da filosofia estoica: ética, lógica e física).
A dimensão epistemológica se refere à distinção entre mera opinião e ciência, distinção sempre enfatizada pela filosofia e pela ciência. Trata-se de conhecimento que faz falta a muitos dos nossos contemporâneos, que, apesar de viverem em uma sociedade altamente científica e tecnológica, não foram educados para compreenderem em que tipo de sociedade vivem, não compreendem a diferença entre ciência, religião e mera opinião. Nessa linha, um caro amigo outro dia me afirmou quanto à questão da pandemia: Deve haver uma outra opinião quanto ao que fazer em relação à pandemia que não a científica! Fiquei em silêncio, pois claramente aparentemente faltava ao amigo o conhecimento para realizar essas distinções.
A dimensão lógica se refere às regras relativas ao pensamento correto. Somos naturalmente animais inteligentes, mas não nascemos sabendo as regras do pensamento correto. A razão é, em nós, uma capacidade, como a de correr, que tem de ser desenvolvida com teoria e exercício.
Para o bom uso de nossa inteligência, os estoicos prescrevem o estudo da lógica formal (as regras puras do pensamento) e da informal (o estudo dos sofismas). Meus cursos de introdução à filosofia se concentram sobre esses últimos dois pontos, buscando mostrar aos meus alunos, como o faziam os antigos estoicos, que esse é um conhecimento útil no dia a dia e essencial para a boa vida.
O estudo dos sofismas, por exemplo, nos leva a evitar concordar com uma série de mentiras que são veiculadas pela mídia e que contamos uns aos outros como se fossem verdades. Por exemplo, uma falácia que é assentida por muitos hoje: Ou se instaura uma ditadura ou país se tornará comunista. Trata-se de falsa dicotomia, sofisma que ocorre quando se apontam duas alternativas enquanto na verdade há várias. De fato, há muitas alternativas para esse caso: podemos ter governos de centro~esquerda ou de centro~direita, podemos mudar o sistema para o parlamentarismo etc. Não há apenas duas possibilidades, mas na verdade há inúmeras. É como se um rapaz dissesse à namorada que reclama que ele bebe demais: Ou me ama como eu sou ou me deixe. Ora, podemos amar as pessoas e ainda assim querer que elas melhorem, que elas abandonem seus vícios, não há contradição nenhuma nisso. Mais uma vez, temos uma falsa dicotomia.
Assim, aprendendo sobre os sofismas, o estoico evita considerar verdadeiras afirmações falsas. Isso é muito importante, porque dar assentimento ao falso nos leva a falsificar nossa visão do mundo. Para os estoicos, o mundo não se oferece simplesmente para nós através dos nossos sentidos, mas há um encontro entre nossas opiniões e nossas sensações, perfazendo a nossa visão de mundo. Assim, um pessimista verá o mundo a partir de seus juízos, enfatizando tudo de ruim que há mundo afora. O otimista fará o contrário. E qual dos mundos é o verdadeiro? A resposta é: nenhum dos dois. Nem o pessimista nem o otimista estão vendo o mundo tal como ele é, mas tal como eles pensam que ele é, e selecionam no mundo aquelas coisas que parecem confirmar suas ideias. Este é um sofisma chamado Seleção de observações (que ocorre quando levamos em consideração apenas os dados que contam a favor de nossa tese, ignorando os demais, como naquelas propagandas políticas em que todos dizem que vão votar num certo candidato). Epicteto ilustra essa reflexão de forma extraordinária no Manual:
Epicteto, Manual, 5: As coisas não inquietam os humanos, mas as opiniões sobre as coisas. Por exemplo: a morte nada tem de terrível, ou também a Sócrates teria parecido assim, mas é terrível a opinião sobre a morte, segundo a qual ela é terrível. Então, quando formos impedidos ou nos inquietarmos ou nos afligirmos, jamais consideremos outra coisa a causa senão nós mesmos, isto é, nossas próprias opiniões. (tradução: Aldo Dinucci)
Epicteto se refere aqui ao fato de que a vida não é em si mesma um bem ou um mal, pois muitas vezes a morte torna-se preferível à vida. Por exemplo, quando, para continuarmos vivos, tivermos de abandonar nossos princípios e trair aqueles que amamos ou quando alguém se encontra numa situação de doença terminal onde não há nenhuma perspectiva senão sofrimento. Morrer é indiferente porque não se escolhe, não é uma escolha que fazemos, mas todos os humanos necessariamente morrem. O que podemos fazer é morrer de forma tranquila ou corajosa. Isso está sob nosso controle. Tudo dependerá de como nos prepararmos tanto para a vida quanto para a morte.
Aqui chegamos ao terceiro ponto do estoicismo, que é o moral (que inclui para os estoicos também o político). O bicho humano, todos sabem, é o único sobre a face da terra que sabe que vai morrer. E morrer não parece ser coisa fácil. E por isso é algo em que nós evitamos pensar. Evitamos pensar na nossa morte. Evitamos pensar na morte dos nossos queridos. Mas isso, é claro, não evitará essas mortes.
Os humanos têm muito medo da morte, e engenhosos sistemas de crença foram criados para tentar camuflá-la, negá-la. O estoicismo, entretanto, tem como proposta justamente que o humano conheça a realidade e aceite o que há de necessário nela. Para nos harmonizarmos com o real, temos que encará-lo de frente, temos que encarar os fatos para sabermos como agir quando (quando, não se) eles acontecerem.
Em latim, isso se chama de premeditatio malorum, expressão que pode ser entendida como antecipar mentalmente a ocorrência de males não morais (morte, doença, pobreza) para que possamos melhor nos comportar em relação a eles. Isso, na contemporaneidade, se chama de gerenciamento de riscos e cálculo de contingência. Basicamente, os gerenciadores de uma determinada área de empreendimento procuram imaginar toda coisa que pode acontecer e atingir a atividade, tais como calamidades naturais, acidentes, crises econômicas. Um jato comercial, por exemplo, possui uma série de sistemas redundantes. Ele foram criados para serem utilizados quando os sistemas principais falharem. Se o motor de trem de pouso falhar, há um sistema secundário para auxiliar seu funcionamento. Se também esse falhar, há uma espuma especial que é jogada na pista para que o avião pouse de barriga. É preciso, portanto, em toda atividade humana, refletir sobre o worst case scenario, isto é, pensar no que fazer no pior dos casos.
O estoicismo propõe justamente isso ao animal humano. Para viver com tranquilidade, precisamos deixar de temer os piores casos, mas antecipar mentalmente essas situações para desenvolver estratégias para agir da melhor forma possível nas dificuldades. Do contrário, viveremos sempre com medo e, quando o pior acontecer, não saberemos como proceder e seremos infelizes e desafortunados. Por essa razão, Epicteto nos diz:
Epicteto, Manual, 35: Sobre cada uma das coisas sedutoras ou que se prestam ao uso ou que são amadas, lembra-te de indagar qual é a sua natureza, começando pelas menores coisas. Se gostares de um vaso de argila, diz para ti mesmo: “gosto de um vaso de argila”, pois, se ele se quebrar, tu não te inquietarás. Se beijares teu filho ou tua mulher, diz para ti mesmo que beijas um ser humano, pois, quando morrerem, não te inquietarás. (tradução: Aldo Dinucci)
Eis uma passagem pela qual Epicteto tem sido acusado de insensibilidade, mas que está de pleno acordo com o estoicismo. As pessoas que amamos podem morrer a qualquer momento. E precisamos estar preparados, quando isso acontecer, para proceder da melhor forma possível. A morte de um ente querido não deve significar nossa destruição. Com certeza, se são pessoas que nos amam, elas querem nos ver felizes no futuro, querem que superemos o sofrimento inevitável, que estejamos tranquilos, isto é, em conformidade com o Cosmos que fez com que as coisas fossem assim. Querem que nos lembremos delas docemente, e não com sofrimento, e que sejamos felizes em nossas vidas e que nos realizemos.
Agir de outro modo de nada adiantará. Os mortos não ressuscitarão. E, como disse, enquanto vivos, querem nossa felicidade quando nos faltarem, não nossa infelicidade. Na presente pandemia, não é diferente. Negá-la de nada adiantou para melhorar a situação, muito pelo contrário. Os países que encararam os fatos e aceitaram a realidade estão enfrentando de forma muito melhor a calamidade e com menos perdas humanas.
Nesse sentido, o estoicismo pode nos ajudar muito para que possamos ter coragem para encarar a realidade e lidar com ela da melhor maneira possível. É uma ferramenta que nos ajuda a fortalecer em nós o espírito científico e o pensamento racional, unindo esforços à ciência contemporânea. Parafraseando Carl Sagan, o estoicismo é, como a ciência em geral, uma vela acesa na escuridão de nossos tempos.