Durante o período medieval, os mortos eram considerados simplesmente outra faixa etária. Os mortos abençoados que foram consagrados como santos passaram a fazer parte da vida ritual diária e esperava-se que intervissem de alguma forma para apoiar a comunidade.
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Muitas famílias ofereciam orações comemorativas aos seus antepassados, cujos nomes estavam escritos nos “Livros das Horas”, que eram livros de orações que guiavam a devoção diária nas casas. Esses livros incluíam um ciclo de oração conhecido como “Ofício dos Mortos”, que os membros da família podiam realizar para limitar o sofrimento dos entes queridos no pós-vida.
A cultura medieval tinha seus fantasmas, e eles estavam intimamente ligados ao debate teológico sobre o purgatório, céu e inferno, onde os mortos sofriam, mas podiam ser aliviados pelas orações dos vivos. As tradições populares explicavam como as almas dos mortos voltavam pedindo a devoção em oração dos vivos.
Logo as práticas mudaram
Com a Reforma na Europa essa interface cultural com os mortos mudou de forma muito radical. A ideia de um purgatório foi rejeitada pelos teólogos protestantes. Os fantasmas persistiam nas histórias e na literatura folclórica, mas, os mortos foram expulsos do centro da vida religiosa. Na Inglaterra, essas mudanças foram intensificadas no período em que Henrique VIII rompeu com a Igreja Católica na década de 1530. Depois disso, a veneração dos santos e as orações comemorativas associadas ao purgatório foram banidas.
Os mortos também foram “apagados” da vida religiosa de formas mais literais: os iconoclastas da Reforma, que desejavam expurgar igrejas de qualquer associação com práticas católicas, “branquearam” centenas de interiores de igrejas para cobrir os murais ousados e coloridos que decoravam as igrejas paroquiais medievais.
A dança da morte
Mais de 100 pinturas murais com o tema “A dança da morte”, além de dezenas de iluminações de manuscritos, foram identificadas na Inglaterra, Estônia, França, Alemanha, Itália, Espanha e Suíça. Os murais que mostravam uma espécie de dança com mortos tipicamente mostravam cadáveres em decomposição, dançando em meio a figuras representativas da sociedade medieval tardia, classificados da mais alta para a mais baixa: um papa, um imperador, um bispo, um rei, um cardeal, um cavaleiro e um mendigo, todos vagando com indiferença em relação aos final mortal, enquanto os cadáveres se divertem com movimentos e gestos ágeis. Literalmente uma dança com os mortos.
Quando os telespectadores modernos vêem imagens como a Dança da Morte, eles podem associá-los a certos cataclismos conhecidos, mas freqüentemente mal compreendidos, da Idade Média européia, como a terrível praga que varreu a Inglaterra e passou a ser conhecida como Peste Negra.
Uma comunidade saudável
Ao analisar os murais em seu contexto social mais amplo, percebe-se que, para as culturas medievais, morrer era uma “transição”, não uma ruptura, que transferia as pessoas da comunidade dos vivos para os mortos em etapas.
Era parte de um drama espiritual maior que abarcava a família e a comunidade em geral. Durante o processo de morte, as pessoas se reuniram em grupos para ajudar em uma transição bem-sucedida, oferecendo oração e apoio.
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Após a morte, os grupos prepararam o cadáver, costuraram sua mortalha e transportaram o corpo para uma igreja e depois para um cemitério, onde a comunidade em geral participaria dos rituais. Essas atividades exigiram um alto grau de coesão social para funcionar adequadamente. Eles eram o equivalente metafórico de dançar com os mortos.
Os murais dessa “dança com os mortos”, portanto, mostravam não uma cultura mórbida ou doente, mas uma comunidade saudável que enfrentava coletivamente seu destino comum, mesmo quando enfrentaram o desafio de renovar, substituindo os mortos pelos vivos.
Muitos dos murais estão irremediavelmente perdidos. No entanto, o trabalho de restauração moderna conseguiu recuperar alguns deles. Talvez esse trabalho de conservação possa servir de inspiração para recuperar um modelo mais antigo de morte.
FONTE / The conversation