Lúcio Aneu Sêneca era homem de grandes defeitos. Assumidamente, aliás. Sobre sua atuação como político e a conveniência de sua filosofia com a vida que levou, as opiniões sempre divergiram bastante. Homem vastamente rico, não foram poucos os que o acusaram de hipocrisia por dizer, como estoico, que os bens materiais eram coisa indiferente — embora nenhum contemporâneo tenha afirmado que vivesse em fasto escandaloso. Sua proximidade com Nero tornava-o detestável a boa parte do Senado; fora preceptor do futuro imperador, a pedido da mãe deste, Agripina, e enquanto teve ascendência sobre o jovem monarca, nos primeiros anos do reinado, o Império teve boa administração. As relações entre imperador e seu antigo mestre deterioram-se progressivamente, à medida que o caráter tirânico de Nero tornou-se mais e mais manifesto. Sêneca, entretanto, continuou gravitando em torno do poder imperial, talvez por pensar que fosse possível mitigar a crueldade do soberano por meio de sua influência — no que falhou redondamente. Em 62, com a morte de Sexto Afrânio Burro, chefe da guarda pretoriana, o imperador sentiu-se ainda mais confortável para eliminar agentes políticos incômodos. A descoberta da conspiração de Caio Calpúrnio Pisão, três anos depois, deu a Nero o pretexto que faltava para livrar-se de Sêneca e de outras figuras proeminentes.
Nos últimos anos, viveu em reclusão em suas propriedades no sul da Itália, dedicando-se unicamente ao estudo e à escrita. Era da opinião que, quando o ambiente político está corrompido demais, o único meio que tem o filósofo para ser útil aos outros é meditar e escrever pensando na posteridade. Foi assim que surgiram as Cartas a Lucílio, correspondência que trata de diversos temas de natureza ética e que bem se pode considerar como seu testamento filosófico. Na obra, lê-se, por exemplo, esta admissão de Sêneca:
Para que me servirá então o ócio senão para tratar das minhas feridas? se eu te mostrar o pé inchado, a mão coberta de manchas, a perna mirrada com os nervos esclerosados — certamente me permitirás que eu fique em repouso e tente sanar a minha doença. pois fica sabendo que um mal ainda maior é este que te não posso mostrar: este tumor, este inchaço que reside no meu peito. não, eu não pretendo que me cubra de louvores, ou me chames um homem admirável que se retirou por desprezar a sociedade e condenar todas as paixões que afligem os homens! uma coisa apenas eu condenei: a mim mesmo! não deverás aproximar-te de mim na esperança de que eu possa ser-te útil. estás enganado se pensas que podes encontrar aqui algum auxílio: quem mora nesta casa é um doente, não um médico. prefiro que, ao saíres da minha casa, digas assim: “e pensava eu que este homem atingira a felicidade e a sabedoria, aprontava-me para escutar a sua palavra! que desilusão! nada aqui vi ou ouvi que provocasse em mim o desejo de voltar!”. se pensares e falares assim, a tua visita não terá sido inútil: antes quero que compreendas o meu ócio que o invejes!…(Cartas a Lucílio, LXVIII, 7-9)
Quaisquer que tenham sido suas faltas e incoerências, não se pode negar a Sêneca o mérito de ter-se portado com coragem e tranquilidade — se não exemplares, ao menos suficientes — diante da morte. E, do ponto de vista estoico, isso é tudo o que importa, é a virtude por excelência.
Sêneca foi acusado por Nero de envolvimento com os conspiradores que apoiavam a ascensão de Pisão ao trono. Depois de cear com sua esposa Pompeia Paulina, já sabendo o que o imperador decerto lhe destinaria, ele pôs-se à espera da sentença. Um centurião foi enviado à casa do velho preceptor, levando-lhe a ordem imperial de suicidar-se. O relato de Cornélio Tácito a esse respeito merece ser transcrito:
Sêneca, sem nenhum temor, pediu tábuas para redigir um testamento e, com a negativa do centurião, voltando-se a seus amigos, disse-lhes que, dado que estava impedido de gratificar os méritos destes, deixava-lhes um único bem, ainda que fosse o mais belo que lhes podia dar, que era a imagem de sua própria vida; da qual, se tivessem memória do que ela tivera de estimável, estariam pagos com a honra de uma amizade tão constante. Junto a isso, ante as lágrimas deles, já com palavras amorosas, já com severidade à guisa de correção, procurava reconduzi-los à firmeza de ânimo, perguntando-lhes onde estavam os preceitos de sabedoria, onde a resolução de conduta preparada durante tantos anos para opor-se a qualquer adversidade iminente? Havia alguém que ignorasse a crueldade de Nero? E que estava faltando àquele que ordenara o assassinato da mãe e do irmão senão mandar matar também o que fora seu educador e preceptor?
Depois de ter feito tais considerações e outras semelhantes a seus amigos todos, ele abraça sua esposa, e um tantinho emocionado em vista dos temores do momento, faz-lhe exortações e pede-lhe que tratasse de temperar, e não de eternizar, a dor pela perda de um marido, mas que ela a suportasse tomando honesto consolo na contemplação de uma vida dedicada à virtude. Ela, por seu turno, afirmando que também tinha tomado a resolução de morrer então, pede com grande instância a mão de um matador. Com isso, Sêneca, não querendo impedir-lhe a glória e ao mesmo tempo amando-a com ternura, para não abandonar a mulher que fora tão cara a si e só a si às injúrias, diz-lhe: “Eu te havia indicado os conselhos de que tinhas necessidade para levar a vida adiante, mas vejo que escolhes a glória da morte. Não penso mostrar que te tenho inveja ao exemplo que hás de dar de ti, nem estorvar-te essa honra. Seja igual em nós dois a constância de nosso generoso fim, ainda que seja certo que o teu será mais resplendente”. Depois disso, cortaram-se ao mesmo tempo as veias dos braços pelo mesmo ferro. Sêneca, que tinha o corpo muito velho e enfraquecido por larga abstinência, a ponto de fazer derramar sangue muito lentamente, cortou também as veias das pernas e dos tornozelos. E extenuado pela crueldade daqueles tormentos, para não afetar com as mostras de sua dor o ânimo da esposa e para ele mesmo não cair em fraqueza vendo o que ela padecia, persuade-a a que se retire a outro aposento. E servindo-se de sua eloquência até aquele último momento de sua vida, chamando quem escrevesse, ditou muitas coisas que, por terem ficado no vulgo com as mesmas palavras, deixarei de registrar.
Nero, porém, sem nutrir contra Paulina nenhum ódio pessoal e temendo que sua crueldade se tornasse odiosa demais, ordenou que a impedissem de morrer. Sob os rogos dos soldados, seus escravos e libertos pensaram-lhes as feridas dos braços e estancaram-lhe o sangue. Ignora-se se isso foi contra a vontade de Paulina; pois no vulgo, inclinado às piores interpretações, não faltou quem acreditasse que ela tinha procurado partilhar da honra da morte de seu marido enquanto suspeitou que Nero fosse implacável, mas que, depois, quando uma esperança mais doce lhe tinha sido oferecida, ela acabou vencida pelas branduras da vida. Viveu ela ainda alguns anos, fiel à memória de seu esposo, conservando uma palidez extrema que mostrava quanto de sua força vital se lhe tinha esvaído. Entretanto Sêneca, vendo o sangue verter-se com tanta dificuldade e a morte vir tão devagar, solicitou a Estácio Aneu, em quem sabia por experiência ser dotado de uma amizade fiel e da arte da medicina, que lhe trouxesse um veneno já preparado de antemão: o mesmo que se dava aos condenados por julgamento público em Atenas. Sêneca tomou-o, mas foi em vão: seus membros já estavam frios, e o corpo não podia dar livre curso ao efeito do veneno. Enfim, ele entrou em uma banheira de água quente e aspergindo os escravos que lhe estavam mais próximos, acrescentou: “Ofereço esta libação a Júpiter Liberador”. Em seguida foi levado a um aposento de estufa, onde o vapor o sufocou. Seu corpo foi cremado sem pompa solene, como antes o ordenara em seu testamento, enquanto, ainda muito rico e muito poderoso, pensava no que se faria em seus momentos derradeiros.
(Tácito, Anais, XV, 62-64)
Diante da morte, Sêneca foi orgulhoso? Parece que sim: comprova-o sobretudo o fato de ter tentado morrer emulando Sócrates (no que, aliás, falhou por causa da debilidade de seu corpo). Pomposo? Está claro: nem mesmo em seus últimos instantes deixou de discursar a seus amigos e discípulos, e é pena que Tácito não tenha referido suas palavras finais, que acabaram perdidas. O pouco que sabemos delas, contudo, permite-nos inferir que não foram isentas de sabedoria, quadrando bem ao ato. Além disso, devemos reconhecer que o relato dos Anais, aparentemente tão desprovido de idealizações neste ponto, é capaz de dar-nos Sêneca por inteiro, com seus defeitos, mas também com a sua grandeza final. Ele não logrou ter uma morte como a de Sócrates ou de Catão de Útica (seus modelos), mas teve suficiente destemor e paciência para arranjar um meio de deixar a vida com dignidade.
E acaso alguém pensa que uma pessoa de bem deixa aos outros algo de mais seguro e duradouro que o próprio exemplo, do que a imagem de sua vida (imago vitæ suæ)?