Homem acordou vendo o mundo invertido após levar tiro na cabeça

Elisson Amboni
Imagem: Fabrizio Oviedo/Neurosciences and History

Imagine abrir os olhos após um trauma e ser confrontado com uma realidade distorcida, onde tudo parece estar ao contrário, como em um espelho bizarro. Este não é um conto de ficção científica, mas a história verídica do Paciente M, um homem cujo caso de lesão cerebral intrigou cientistas e transformou nossa compreensão do cérebro.

O Paciente M foi atingido por uma bala na cabeça durante a Guerra Civil Espanhola em 1938. Quando despertou, seu mundo havia sido virado de cabeça para baixo, literalmente. Homens trabalhando em andaimes pareciam estar pendurados no ar, enquanto letras e números eram lidos normalmente e ao contrário, sem distinção para seu cérebro confuso.

Mesmo com os sentidos do tato e audição afetados, o Paciente M lidava com essa reviravolta da realidade com uma serenidade notável. Sua experiência, além de surreal, também incluía cores soltas de objetos, visões triplas e daltonismo.

Este conjunto incomum de sintomas atraiu a atenção do neurocientista espanhol Justo Gonzalo, que estudou o Paciente M por quase cinco décadas. A análise de Gonzalo não apenas revelou a fascinante dinâmica do cérebro humano, mas também desafiou as noções convencionais sobre a estrutura e função cerebral.

Gonzalo argumentou que o cérebro não é uma coleção de compartimentos distintos, mas uma rede onde funções estão distribuídas em gradientes. Isso contradizia a sabedoria popular da época, que tratava o cérebro como “caixinhas”, onde cada uma, se danificada, resultaria em déficits específicos.

Com o estudo do Paciente M e outros casos de lesões cerebrais, Gonzalo sugeriu que os efeitos do dano cerebral dependiam do tamanho e posição da lesão, alterando o equilíbrio de várias funções, em vez de erradicar funções específicas. Ele identificou três síndromes principais: central, paracentral e marginal.

A revolucionária pesquisa de Gonzalo, embora não tão conhecida como deveria ser, está agora sendo revisitada pela filha dele, Isabel Gonzalo-Fonrodona, e pelo neuropsicólogo Alberto García Molina. O trabalho pioneiro de seu pai, eles argumentam, ainda detém relevância significativa para a compreensão do cérebro humano.

Na verdade, o estudo do Paciente M e outros casos únicos nos ensinaram sobre a função cerebral por séculos, servindo como fonte alternativa valiosa de evidências científicas para as meta-análises e grandes ensaios clínicos do mundo contemporâneo.

A persistência das ideias de Gonzalo evidencia que ele estava à frente de seu tempo em sua interpretação das lesões e da visão invertida do Paciente M. A pesquisa foi publicada na revista Neurologia, lançando luz sobre um dos casos mais singulares da neurociência.

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