Para entender a queda da União Soviética,é importante distinguir o socialismo do comunismo, segundo Elena Málicheva, chefe do Departamento de Estudos de Arquivo do Instituto de História e Arquivos da Rússia.
“Enquanto o socialismo era um tipo formal de administração estatal da URSS, o comunismo era a ideologia dominante. O projeto de um Estado socialista era inicialmente utópico e populista”, diz.
Rudôlf Pikhóia, doutor em História e ex-arquivista russo, argumenta, em seu artigo “Por que a União Soviética caiu?”, que a principal característica do Estado soviético era a unidade dos órgãos governamentais e do Partido Comunista. A Constituição Soviética de 1977 definiu o Partido como “o núcleo do sistema político”.
Seguindo esta linha, Lênin afirmava que o Soviete – ou seja, os órgãos eleitos de autogestão local – era uma forma de democracia direta e, assim, não havia necessidade de parlamento ou de separação de poderes (legislativo, executivo e judiciário). Tudo seria tratado pelos membros do Soviete Supremo da União Soviética, composto por eleitos dos sovietes locais. O problema é que as eleições dos sovietes eram uma farsa.
Todos os funcionários eram nomeados pelo Partido Comunista da União Soviética, e seu Comitê Central era quem governava efetivamente o país. Todos os militares, funcionários públicos, policiais e agentes dos serviços secretos pertenciam ao Partido.
A segurança do país era provida por um verdadeiro exército de agentes da KGB. Em entrevista recente, o general Filipp Bobkov (1925 – 2019), que foi vice-chefe da KGB entre 1983 e 1991, afirmou que em cada região havia de 300 a 500 agentes disfarçados da KGB. As principais regiões, porém, chegavam a ter até 1.500 ou 2.000 desses agentes.
Sob essas condições, quem discordava e se rebelava contra o sistema era intimidado com cadeias e campos de trabalho. O terrível sistema Gulag tinha mais de 500 mil pessoas em campos de trabalhos forçados em 1933. A partir de 1936, havia mais de um milhão de condenados, chegando a 2,5 milhões no início da década de 1950. As atrocidades do sistema eram óbvias.
‘Melhor o campo de concentração’, dizia Lênin
“O projeto soviético continha elementos do que hoje chamamos de ‘estado social’: mobilidade social, institutos da sociedade civil, apoio social, serviços gratuitos de saúde etc. Mas, devido à natureza utópica do projeto, nada podia ser implementado na íntegra, porque não havia separação de poderes e autoadministração do povo. Tudo isso exige altas responsabilidades sociais que a sociedade soviética não tinha”, diz Elena Málicheva.
Lênin e seus camaradas podem ter acreditado que todos os oficiais do Partido e do Soviete eram justos e honestos e não subornariam, roubariam ou abusariam de seu status oficial. Infelizmente, porém, a realidade estava longe disto.
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Mesmo no início da União Soviética, os bolcheviques usavam métodos desumanos para obter os grãos dos camponeses que os produziam. Havia forte resistência civil, às vezes, até rebeliões como a de Tambóv entre 1920 e 1921, quando dezenas de milhares de camponeses foram mortos pelo Exército Vermelho.
Enquanto isso, as pessoas que não se encaixavam no “novo mundo”, sobretudo ex-integrantes da burguesia e latifundiários, também deveriam ser destruídas. “Um extermínio impiedoso é necessário”, escreveu Lênin. “Com estrangeiros, não se apressem em expulsá-los. Talvez um campo de concentração seja melhor”, disse.
Era óbvio que Lenin estava tentando construir um estado idealista de justiça social e igualdade, mas com métodos atrozes. O psicólogo e pensador Jordan Peterson argumenta que idealizar Lênin e dizer que ele só buscava o bem-estar da classe trabalhadora é algo ingênuo. De maneira simplista, ele afirma: “O capanga de Lênin era Stálin. E se seu capanga é Stálin, você não é um cara legal”.
Para esmagar a resistência dos camponeses, o Estado declarou a nacionalização da propriedade privada e a coletivização da terra e dos meios de produção agrícola. Dali em diante, a terra dos camponeses, o gado e as ferramentas agrícolas pertenciam aos “kolkhózes”, ou seja, as fazendas coletivas.
Os camponeses foram quase totalmente privados de dinheiro. Eles trabalhavam e recebiam produtos pelo número de dias trabalhados. Se os historiadores falam sobre a abolição da servidão em 1861, ela teve um reavivamento entre 1932 e 1937, quando os camponeses foram proibidos de deixar o “kolkhóz” para onde tinham sido designados.
A queda da economia
O sistema de agricultura coletiva levou a um declínio acentuado na produção de grãos. Foi preciso comprar provisões no exterior. Antes um dos principais exportadores de grãos do mundo (a partir de 1913), a Rússia tornou-se um dos principais importadores.
Rudôlf Pikhóia mostra, por meio de estatísticas, que, em 1973, a URSS importou 13,2% da quantidade de grãos que consumia, e, em 1981, 41,4%.
Em 1987, apenas 24% da produção do país era de bens de consumo: o Estado tinha impulsionado uma militarização sem precedentes em detrimento do próprio povo.
Mas de onde vinha a renda? Entre 1970 e 1980, a produção de petróleo na Sibéria aumentou 10 vezes (de 31 milhões de toneladas para 312 milhões de toneladas), enquanto a produção de gás aumentou de 9,5 bilhões de metros cúbicos para 156 bilhões de metros cúbicos.
O petróleo e o gás eram exportados para o Ocidente e se tornaram a única tábua de salvação para a economia soviética, que estava em declínio.
“O aparato do Partido e o do Estado fundiram-se em todos os níveis: executivo, administrativo e comunicativo”, diz Málicheva. “Em caso de crise em qualquer um deles, o outro também entrava em declínio. Assim, quando a democracia começou a se desenvolver no final dos anos 1980, o Partido não conseguiu manter o poder. Apesar de a ideologia comunista em si ter capacidade de sobrevivência, a fusão com o aparato estatal condenou o comunismo”.
A catástrofe de Tchernóbil mostrou que o poder Executivo estava podre até as entranhas. Depois que Mikhail Gorbatchóv iniciou reformas sociais e políticas, o instável equilíbrio do Partido e do Estado se desfez. Após a introdução de eleições de verdade, os povos das repúblicas soviéticas mostraram uma forte inclinação pela soberania e pela possibilidade de tomar suas próprias decisões.
Enquanto isso, o antigo aparato do Partido se demitiu: entre 1986 e 1989, 90% dos funcionários locais do Partido em todas as repúblicas renunciaram e, no final das contas, a União se desfez. Incapaz de se renovar seguindo as demandas de então, o sistema soviético mostrou-se insustentável.
Esta matéria apareceu primeiro em Russia Beyond.