Universo paralelo: quando uma simples partícula causou um alvoroço entre jornalistas

Felipe Miranda
(NASA, ESA, H. Teplitz and M. Rafelski (IPAC/Caltech), A. Koekemoer (STScI), R. Windhorst (Arizona State University), and Z. Levay (STScI).

No primeiro semestre de 2020, o veredito estava dado: 2020 era definitivamente um ano estranho e os “cientistas da NASA descobriram um universo paralelo”, conforme a mídia nacional e internacional relatou. Mas há apenas um erro – a frase inteira. Nenhum cientista da NASA encontrou um universo paralelo. Na verdade, a NASA nem se envolveu com esse suposto “estudo”. E um estudo que indicou um universo paralelo nunca existiu.

Embora a história já possua alguns meses, é sempre bom retomá-la, já que em alguns momentos surgem algumas pessoas falando dela por aí. Por se tratar de uma área tão bizarra, relacionada à física quântica, pode parecer estranho, e até mesmo convincente. Lembrando que não ataco ou critico ninguém, apenas apresentarei os fatos. 

Que história é essa?

Tudo começou quando o físico Neil Turok deu uma entrevista à edição impressa de abril da revista de divulgação científica New Scientist.

Acontece que, embora fosse algo relacionado à divulgação científica, a entrevista beirou a informalidade, para tornar tudo mais atrativo mesmo. A divulgação científica não precisa ser 100% técnica. Mas a partir daí iniciou-se uma completa má interpretação pelos jornalistas. 

Turok falou sobre uma ideia extremamente marginal para explicar um fenômeno estranho detectado na Antártica, mas não se sabe se intencionalmente ou de forma acidental, a revista estampou o título da notícia com “universo paralelo voltando no tempo”. 

Neutrinos ascendentes

Há um experimento na Antártica chamado ANITA (Antarctic Impulsive Transient Antenna). Trata-se de um experimento que coleta sinais de raios cósmicos na Antártica. Embora receba financiamentos da NASA para se manter, não possui relação direta com a agência, conforme muitos afirmaram. Eles a mantêm no continente antártico por ser um local seco e desértico, apresentando pouca interferências aos sensores. 

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Ryan Nichol /UCL Physics & Astronomy

Em 2016, a equipe da ANITA publicou, no periódico Physical Review Letters (também disponível no arXiv), um artigo onde relatam a estranha detecção de neutrinos de alta energía provenientes de raios cósmicos apontando para cima, isto é, saindo da Terra, e isso não deveria acontecer por diversos motivos técnicos. Vasculhando por diversos papers, encontrei diversas equipes debruçando-se sobre o problema e trazendo algumas soluções. E adivinhe só – nenhum trabalho científico mencionou um universo paralelo. 

Conforme já disse Carl Sagan, “Alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias.”

Em 2016, ANITA detectou as partículas ascendentes pela primeira vez. As chances de um neutrino e alta energia sobreviver à passagem através da Terra são bem baixas. Portanto, seria extremamente difícil detectar uma vez. Mas ainda não era impossível, e essa era uma argumentação válida. Mas a partir da segunda detecção, algum tempo depois, isso ficou ainda mais estranho. Seria como ganhar na loteria duas vezes. 

Em março de 2020, em um artigo no The Astrophysical Journal (também disponível em acesso aberto no arXiv) uma grande equipe de cientistas buscou por alguma explicação, ou algum tipo de neutrino candidato. Mas nenhuma possibilidade parecia real. A conclusão do estudo foi que em qualquer hipótese as detecções desafiavam o Modelo Padrão. 

Universo paralelo gêmeo

E é aí que Turok e a matéria da New Scientist falam sobre o universo paralelo. Ele diz que de alguma forma esse neutrino veio de um universo gêmeo do nosso universo e saiu bem ali no gelo antártico. E nem preciso falar que isso é improvável, praticamente impossível de acontecer. Há centenas de explicações menos loucas.

Mas ele sugere isso simplesmente por uma questão estética, de beleza da ciência, talvez um desejo. Essa possibilidade seria bastante bonita, pois explicaria, de brinde, diversas outras questões. Para ele, um universo paralelo “gêmeo” explicaria, por exemplo, por que toda a matéria não se aniquilou com antimatéria, e porque não encontramos a antimatéria restante do universo em quantidade substanciais (entenda sobre essa assimetria neste texto da UFRJ).

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Meghan McCarter

Esse universo paralelo gêmeo seria completamente o oposto de nosso universo: lá o tempo corre pra trás, predomina a antimatéria, etc. É lindo. Mas completamente improvável. Já falei aqui na Socientífica sobre as vantagens para a física de se ter um universo espelho.

Uma das sugestões para explicar, por exemplo, está no decaimento de um neutrino tau, que daria origem ao neutrino mais “pesado”. Mas isso ainda estaria em desconformidade com o Modelo Padrão, e significaria que precisamos de uma grande revisão.

Pontuo isso para exemplificar o fato de que há diversos cientistas trabalhando no assunto, como você viu nos inúmeros estudos linkados ao longo do texto. Os cientistas estão completamente confusos com isso, mas há inúmeras explicações possíveis, e o neutrino tau é apenas uma delas. 

Portanto, podemos afirmar que não há universo paralelo algum. Quando você ver jornais com afirmações extraordinárias em demasia, desconfie. 

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