Os mitos em torno da Inquisição

Gabriel S. Rogério

Tem-se dito que os procedimentos hediondos da Inquisição foram injustos, cruéis, desumanos e bárbaros. Que a Inquisição queimava milhares de vítimas sobre o fogo, emparedava-os em paredes a definhar por toda a eternidade, quebravam suas articulações com martelos, e esfolavam-os sobre rodas.

Apesar das ficções góticas convincentes, a evidência nos leva a uma conclusão totalmente diferente. Os procedimentos da Inquisição são bem conhecidos através de toda uma série de bulas papais e outros documentos oficiais, mas, principalmente, por meio de tais formulários e manuais como foram preparados por São Raimundo Penaforte (1180-1275 d.C), o grande canonista espanhol, e Bernard Gui (1261-1331), um dos inquisidores mais célebres do início do século XIV.

Os inquisidores eram certamente interrogadores, mas eles também eram especialistas teológicos que seguiam as regras e instruções meticulosamente e eram demitidos e punidos quando mostravam muito pouca consideração pela justiça. Quando, por exemplo, em 1223, Robert de Bourger anunciou alegremente seu objetivo de queimar os hereges, e não convertê-los, ele foi imediatamente suspenso e preso por toda a vida por Gregório IX. [16]

Os procedimentos inquisitoriais foram surpreendentemente justos e até mesmo brandos. Em contraste com outros tribunais seculares em toda a Europa no momento, eles aparecem como quase iluminados. O processo começava com uma convocação dos fiéis à igreja onde o inquisidor pregava um sermão solene, o Edit de foi. Todos os hereges eram instados a se apresentar e confessar os seus erros. Este período foi conhecido como o “tempo de graça”, que geralmente durava entre 15-30 dias, durante os quais todos os transgressores não tinham nada a temer, já que a eles era prometida a readmissão à comunhão dos fiéis com uma penitência adequada após a confissão de culpa. Bernard Gui afirmou que este tempo de graça era uma instituição mais saudável e valiosa e que muitas pessoas foram reconciliadas assim. [17] Pois o principal objetivo do processo era colocar o herege de volta à graça de Deus; apenas por teimosia persistente que ele seria cortado da Igreja e abandonado à mercê do Estado. A Inquisição foi antes de tudo um escritório penitencial e proselitista, e não um tribunal penal. Ao menos que isto seja claramente reconhecido, a Inquisição aparece como uma monstruosidade ininteligível e sem sentido. Em teoria, era um pecador, e não um criminoso, que estava diante do inquisidor. Se a ovelha perdida voltou para o aprisco, o inquisidor era bem-sucedido. Se não, o herege morreu em rebelião aberta contra Deus e, na medida em que o inquisidor estava em causa, a sua missão era um completo fracasso.

Durante este tempo de graça, os fiéis eram ordenados a fornecer informações completas ao inquisidor sobre quaisquer hereges conhecidos por eles. Se houvessem motivos suficientes para proceder contra uma pessoa, um mandado que ordenava a sua comparência perante um inquisidor em uma data especificada era expedido, sempre acompanhado por uma declaração escrita cheia de provas detidas pelo inquisidor contra ele. Finalmente, poderia ser emitida uma ordem formal de prisão. Se o acusado não comparecesse, o que raramente ocorria, ele se tornaria um excomungado e um homem proscrito, isto é, ele não poderia ser protegido ou alimentado por qualquer pessoa sob pena de excomunhão.

Embora os nomes das testemunhas contra o acusado fossem suprimidos, ao acusado era dada a oportunidade de se proteger de acusações falsas, dando ao inquisidor uma lista detalhada dos nomes dos inimigos pessoais. Com isso, ele teria conclusivamente invalidado determinado testemunho contra ele. Ele também detinha o poder de apelar para uma autoridade superior, até mesmo ao papado se necessário fosse. [18] A vantagem final do acusado era que as testemunhas falsas eram punidas, sem misericórdia. Por exemplo, Bernard Gui descreve um pai que falsamente acusou seu filho de heresia. A inocência do filho rapidamente veio à luz, e o pai foi preso e condenado à prisão perpétua.

Em 1264, Urbano IV acrescentou ainda que o inquisidor deveria apresentar as provas contra o acusado a um corpo de periti (peritos) ou boni viri (bons homens) e aguardar o seu julgamento antes de prosseguir para a sentença. Agindo mais ou menos na capacidade de jurados, este grupo poderia ser de trinta, cinquenta, ou mesmo oitenta. Isto serviu para diminuir a enorme responsabilidade pessoal do inquiridor. Novamente, é importante enfatizar que este era um tribunal eclesiástico, que não declarou nem exerceu qualquer jurisdição sobre pessoas de fora da família da fé, isto é, o infiel professo ou o judeu. Somente aqueles que haviam sido convertidos ao cristianismo e que tinham posteriormente revertido à sua antiga religião estavam sob a jurisdição da Inquisição medieval. [19]

A tortura foi autorizada pela primeira vez por Inocêncio IV na bula Ad Extirpanda de 15 de Maio, 1252, com limites que não poderiam causar a perda de um membro ou por em perigo a vida, só podia ser aplicada uma vez, e apenas se o acusado já aparentasse praticamente condenado de heresia por provas múltiplas e determinadas. Certos estudos objetivos realizados por estudiosos recentes têm argumentado que a tortura era praticamente desconhecida no processo inquisitorial medieval. O registro de Bernard Gui, o inquisidor de Toulouse por seis anos, que examinou mais de 600 hereges, mostra apenas uma instância em que foi usada tortura. Além disso, das 930 sentenças registradas entre 1307 e 1323 (e vale a pena notar que registros meticulosos foram mantidos por notários pagos escolhidos entre tribunais civis), a maioria dos acusados foi condenada à prisão, ou ao uso de cruzes, e penitências. Apenas 42 foram abandonados ao braço secular e queimados. [20]

Lendas sobre a brutalidade da Inquisição no que diz respeito ao número de pessoas condenadas à prisão e daquelas abandonadas ao poder secular para serem queimadas na fogueira têm sido exageradas através dos anos. Trabalhando com cuidado a partir de registros existentes e documentos disponíveis, o professor Yves Dossat estimou que na diocese de Toulouse, 5.000 pessoas foram investigadas durante os anos de 1245-1246. Destes, 945 foram julgados culpados de heresia ou envolvimento herético. Embora 105 pessoas tenham sido condenadas à prisão, 840 receberam penitências menores. Após análise cuidadosa de todos os dados disponíveis, Dossat concluiu que em meados do século XIII, apenas um em cada cem hereges condenados pela Inquisição eram abandonados ao poder secular para execução, e apenas 10-12 por cento, receberam sentenças de prisão. Além disso, os inquisidores muitas vezes reduziam as sentenças a penitências menores. [21]

O grande número de queimados detalhados em várias histórias são geralmente não autênticos, ou são uma invenção deliberada de propagandistas anti-católicos de séculos posteriores. A partir da evidência crescente, parece seguro afirmar que a integridade geral do Santo Ofício foi mantida em um nível extraordinariamente elevado, muito maior que a dos tribunais seculares contemporâneos ou posteriores.

Séculos de propaganda falsa tem convencido a maioria das pessoas de que a Inquisição foi uma das instituições mais más que já foram inventadas.

Notas

16. Maycock, The Inquisition, 128-29.

17. Em 1323, o inquisidor Bernardo Gui (injustamente difamado no romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa) produziu o Practica officii Inquisitionis heretice pravitatis, um manual inquisitorial elaborado e equilibrado. As doutrinas e procedimentos dos inquisidores derivavam tanto da teologia quanto do direito canônico, bem como a partir dos primeiros trabalhos de Padres da Igreja de concílios gerais e papas. Peters, Inquisition, pp. 60-64.

18. Apesar da aparente proibição de apelos (appelatione remota), Gregório IX e seu sucessor Inocêncio IV receberam repetidamente apelos feitos pelo autor da denúncia e anularam decisões injustas. Ao longo de todo este período parece que apelos encontraram o caminho para Roma, para reparação. Na verdade, o modelo das regulamentações há muito esquecidas do Código Justiniano, através do processo inquisitorial a Igreja trouxe o processo de recurso na legislação da Idade Média, pois apelos foram feitos fora dos tribunais, senhoriais feudais locais. O sucesso do sistema da Igreja da justiça não foi perdido em governantes seculares, que eventualmente adotaram apelos como procedimento regular em seus próprios sistemas judiciais reorganizados e centralizados. Shannon, The Medieval Inquisição, pp.139-40.

19. Hamilton, Inquisition, pp. 150-51, 130-33, 140-41.

20. Ibid., p. 160.

21. Ives Dossat, Les Crises de l’inquisition toulousaine au XIIIe siècle (1233-1273), Bordeaux: Imprimerie Bière, 1959, 247-268.

Para citar

HORVAT, Marian. 5 Mitos sobre a Inquisição refutados por uma PHD em história. Traduzido por: Rafael Rodrigues.

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