Enigmas da Ilha de Páscoa podem reescrever a história da escrita

Damares Alves
Tablete de Rongorongo no Museu Bishop, no Havaí.

Pesquisadores da Universidade de Bolonha revelaram um acontecimento notável no campo da escrita humana. De acordo com um novo estudo publicado na revista Nature, uma antiga tabuleta datada de antes da chegada dos europeus à isolada Ilha de Páscoa, conhecida também como Rapa Nui, fornece indícios de uma possível quinta invenção independente da escrita. As implicações desse estudo para a compreensão da história da escrita são profundas, sugerindo uma repetição do fenômeno inventivo entre os povos.

Silvia Ferrara, coautora do estudo e professora de filologia na Universidade de Bolonha, aponta para a importância do achado para nosso entendimento da evolução da capacidade de registrar o pensamento humano. “Esse seria um passo preliminar, mas fundamental, para entender quantas vezes os seres humanos chegaram à revolucionária invenção da escrita”, disse ela.

Os tabletes de Rongorongo são um mistério para os acadêmicos desde a chegada dos europeus a Rapa Nui, intrigante pelo seu desenvolvimento aparentemente isolado. Os tabletes contêm símbolos que representam figuras humanas, partes do corpo, ferramentas, plantas, animais e corpos celestes. Embora não se assemelhem a nenhum outro script conhecido, a sequência linear, as ligações e as evidências de correções sugerem ser um idioma legítimo.

Polinésios estabeleceram-se em Rapa Nui entre 1150 e 1280 d.C, cultivando uma cultura hoje marcada pelos moais, esculturas megalíticas em forma de bustos gigantes. Eles também desenvolveram a “escrita” local, o Rongorongo.

Moais da Ilha de Páscoa por Bjørn Christian Tørrissen, Domínio Público.
Moais da Ilha de Páscoa. Imagem: Bjørn Christian Tørrissen

Europeus desembarcaram em Rapa Nui na década de 1720. Cerca de um século depois, iniciaram-se invasões e sequestros dos moradores locais. Até o final do século XIX, a cultura de Rapa Nui foi dizimada, sobrevivendo apenas 27 tabletes de Rongorongo, somando cerca de 17.000 glifos, levados para o exterior por missionários em meados do século XIX. Quatro desses tabletes foram parar na Congregazione dei Sacri Cuori di Gesù e di Maria, em Roma, Itália.

Segundo Ferrara, “dos 27 tabletes que estão espalhados pelo mundo, os tabletes em Roma são muito significativos, pois contêm uma grande quantidade de conteúdo escrito”.

Sahra Talamo, professora de química na Universidade de Bolonha e diretora do Laboratório de Radiocarbono de Bolonha dedicado à Evolução Humana, propôs a datação por radiocarbono do madeiramento dos tabletes em Roma. Inicialmente, Ferrara tinha suas dúvidas por considerar a técnica destrutiva, contudo, a autorização foi concedida pela Congregazione.

O método de datação por radiocarbono é renomado por sua capacidade de datar objetos com até 55.000 anos de idade. O laboratório BRAVHO enfatiza a minimização do impacto de suas análises ao utilizar amostras mínimas sempre que possível.

Antes da remoção da madeira para a análise, a equipe desenvolveu modelos 3D dos quatro tabletes Rongorongo de Roma com o uso de um scanner a laser. Os resultados do processo foram reveladores. O teste de radiocarbono indicou que a madeira de um dos tabletes data do ano 1450 d.C., o que é particularmente notável, pois antecede a chegada dos europeus em mais de dois séculos. A descoberta sugere uma origem independente da escrita Rongorongo, sem influência direta de culturas com histórico de escrita pré-existente.

Imagem de satélite da Ilha de Páscoa. Imagem: ESA
Imagem de satélite da Ilha de Páscoa. Imagem: ESA

A incerteza reside no fato de que a madeira do tablete ser do século XV não implica necessariamente que o texto em Rongorongo tenha sido gravado na mesma época. “A datação da madeira não significa que possamos datar a composição síncrona do texto, mas quem alega que o texto foi escrito muito depois da data da derrubada da árvore tem o ônus da prova”, explica Ferrara.

Ambas pesquisadoras supõem que as inscrições nos tabletes foram feitas pouco depois de cortar a árvore. “Nós datamos exatamente o momento em que a árvore foi cortada. É crucial considerar que, com o passar dos meses, dias ou até anos, se a árvore não for bem preservada, ela pode secar, tornando a madeira impossível de ser usada para escrever”, complementa Talamo. “Então, é provável que o script tenha sido feito aproximadamente na mesma época, ou pouco tempo depois”.

Se a “escrita” Rongorongo foi criada antes da chegada dos europeus, isso a tornaria a quinta vez na história em que os humanos desenvolveram um sistema de escrita independente: uma descoberta verdadeiramente esclarecedora, visto que, há apenas meio século atrás, especialistas acreditavam que os humanos tinham inventado a escrita apenas uma vez.

“Se os seres humanos inventaram um sistema de escrita independente quatro vezes, a questão é, por que não mais? Evidências indiretas apontam nessa direção”, disse Ferrara.

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