Corvos têm consciência de si e raciocinam como pessoas

Samuel Fernando

Seres humanos muitas vezes tendem a acreditar ser a única espécie a possuir certas habilidades, especialmente cognitivas ou mentais. A partir de evidências vindas de estudos experimentais com outros primatas, já foi demonstrado que esse excepcionalismo não se sustenta. Funções cognitivas superiores, como cognição social, teoria da mente e processamento de emoção também estão presentes em animais não-humanos.

Além dos primatas, outro animal modelo em estudos de cognição é o corvo. Uma pesquisa publicada recentemente na Science descobriu que os corvos são capazes de abstrações sobre suas próprias ações, e que podem até ponderar sobre o conteúdo de suas próprias mentes, o que é definitivamente uma manifestação de inteligência e pensamento analítico — algo há muito creditado como exclusivamente humano.

As experiências subjetivas humanas são acessadas conscientemente a partir da ativação do córtex cerebral. A consciência é um fenômeno muito explorado pela filosofia da mente, psicologia e neurociência. Existe consciência fenomenal, que é a experiência propriamente dita, e consciência de acesso, que é o processamento das coisas que vivenciamos durante a experiência. Em neurobiologia, a consciência sensorial é equivalente a consciência de acesso, visto que as experiências dependem dos estímulos sensoriais. Não se sabe se tal nível de consciência também pode surgir de cérebros organizados de forma diferente, por exemplo, em um córtex cerebral dividido em camadas, como o cérebro dos pássaros.

Os autores do estudo mencionado registraram respostas de um único neurônio no encéfalo palial de corvos executando uma tarefa de detecção visual correlacionada com a percepção das aves sobre a presença ou ausência de estímulos, e argumentaram que isso seria um marcador empírico da consciência sensorial nesses animais. O experimento demonstrou claramente que os corvos podem manter uma representação interna antes de executar uma ação com base em uma regra que é posteriormente apresentada a eles. Esse é um tipo de tarefa visual que tem sido usada em primatas para distinguir o que acontece no cérebro quando um animal detecta conscientemente um estímulo e quando não detecta.

Dois corvos foram treinados para realizar a tarefa comportamental, enquanto centenas de neurônios em uma parte específica do cérebro do pássaro eram registrados. Os pássaros recebiam um estímulo ou não recebiam por um breve período — tão rápido que às vezes eles conseguiam detectar e às vezes não. A capacidade de detectar provavelmente dependia do estado interno atual do cérebro do corvo. Após um breve período, os corvos eram expostos a uma regra, que lhes dizia como devem agir em resposta à presença ou ausência de um estímulo.

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O EXPERIMENTO: Os corvos recebiam um breve estímulo visual de intensidade variável em 50% das tentativas (tentativas de estímulo), enquanto nenhum estímulo aparecia na outra metade das tentativas (ausência de estímulo). Após um período de atraso, uma regra informava ao corvo como responder se ele tivesse visto ou o estímulo. A atividade neuronal dos corvos respondia de acordo com a regra.

A configuração do experimento permitiu separar a entrada do estímulo (input) e a percepção do animal. Em particular, os corvos podem estar errados de duas maneiras: eles podem deixar de ver algo quando um estímulo foi realmente apresentado, ou podem pensar que viram algo quando nenhum estímulo foi apresentado, levando a uma distinção entre estimulação visual direta e experiência subjetiva. Os autores tomaram esses dados como evidência de “consciência de acesso”, processamento das coisas que vivenciamos durante a experiência, o que significa que algum estado neural interno, um padrão cognitivo específico que representa algo no mundo externo codificado redes neurais dedicadas, pode ser mantido temporalmente, mesmo na ausência do estímulo e que essa informação pode ser disponibilizada, acessada ou transmitida para o restante do sistema nervoso.

A neurocientista brasileira Suzana Herculano aponta que o pálio é uma porção que pode representar até 75% do volume cerebral das aves, sendo uma área responsável pela inteligência nesses animais. Como seus neurônios são menores, o pálio dos corvos e de outros pássaros compreende muito mais unidades neuronais de processamento de informações do que os córtices de mamíferos de tamanho equivalente.

Além disso, os corvos, assim como os primatas, desenvolveram uma memória de alta capacidade que reflete o resultado da evolução convergente de habilidades cognitivas superiores em ambas as espécies. Sendo a cognição um tipo de adaptação psicológica, algumas pressões seletivas foram postuladas como causas da evolução da cognição, a saber, pressões favorecendo a eficiência de forrageamento resultaram em expansão do cérebro e formação de módulos cognitivos sofisticados para memória espacial e temporal, memória de trabalho e consciência sensorial.

Segundo a biologia evolutiva, esses animais desenvolveram especializações para lembrar, codificar e prever a localização de recursos que estão distribuídos irregularmente no tempo e no espaço, essencial para a sobrevivência e reprodução. Quando um suprimento de alimentos está disponível abundantemente, muitos animais armazenam uma quantidade para consumo em períodos posteriores de escassez de alimentos. No entanto, para recuperar os estoques com eficiência, tais espécies precisam processar informações relacionadas à localização, tipo e a perecibilidade dos itens alimentares armazenados e o contexto social do armazenamento. Notem que estamos falando literalmente em controle de estoque e habilidades de gerenciamento de recursos.

Alguns corvídeos, como o Quebra-nozes de Clark (Nucifraga columbiana) podem esconder até 33.000 sementes de pinheiro em 5.000 esconderijos que podem estar cerca de 25km distantes do local de coleta, recuperando a maioria delas até seis meses depois. Tais comportamentos sugerem que essas aves possuem uma memória espacial de longo prazo muito avançada. Por outro lado, outros corvídeos, como os gaio-comum (Garrulus glandarius), armazenam menos, mas uma variedade maior de itens alimentares que diferem em suas taxas de perecibilidade. Consequentemente, eles não apenas lembram onde armazenaram, mas também o que armazenaram e quando, para que o alimento perecível possa ser recuperado quando ainda for comestível.

Visto que estamos falando também de mente, cognição e psicologia evolutiva comparada, vale a pena mencionar as “células de lugar” (place cells), neurônios localizados no hipocampo (em humanos, macacos, morcegos e outros mamíferos). O que as células de lugar fazem? Elas codificam o espaço. Quando um animal entra em um determinado local, que é conhecido como campo local, as células de lugar atuam como uma representação cognitiva da localização específica no espaço, chamado mapa cognitivo, conforme o animal percorre o ambiente em linhas, aleatórias ou não, como mostrado na última imagem. Os padrões de disparo das células de lugar são frequentemente determinados por estímulos no ambiente, incluindo pontos de referência visuais ou estímulos olfativos, um processamento neural muito parecido com o dos corvídeos, que permite localizar seus estoques de alimentos.

Os corvos estão liderando boa parte da revolução da opinião científica e filosófica sobre a inteligência em animais não-humanos e o que a evolução biológica pode nos dizer sobre consciência e individualidade, mas nada disso parece ser uma novidade para os povos antigos.

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Huginn e Muninn sentados nos ombros de Odin na ilustração de um manuscrito islandês do século XVIII.

Corvos aparecem em diferentes mitologias e folclores, na literatura e nas religiões. Em alguns casos, esses pássaros de penas pretas são considerados um presságio de más notícias, mas em outros, eles podem representar uma mensagem divina. Os corvos às vezes servem como um método de adivinhação e profecia. No folclore nativo americano, a inteligência dos corvos é geralmente retratada como sua característica mais importante. Um antigo adágio greco-romano, contado por Erasmo, diz que “os cisnes cantam enquanto os corvos se calam”, o que significa que pessoas instruídas ou sábias falarão depois que os tolos se calarem.

O poeta romano Ovídio viu o corvo como um prenúncio de chuva. No relato bíblico do Antigo Testamento foram os corvos que alimentaram Elias na caverna. Corvos são os mensageiros no hinduísmo, como portadores de informações que dão presságios às pessoas a respeito de suas situações. Na lenda bíblica da arca de Noé e na Epopeia de Gilgamesh, corvos são soltos para sondarem o mundo após o dilúvio. Na mitologia chinesa, o mundo originalmente tinha 10 sóis espiritualmente encarnados como 10 corvos. 

Na mitologia irlandesa, os corvos são associados a Morrigan, a deusa da guerra e da morte. E o que dizer do corvo falante de Edgar Allan Poe? Ou de Huginn e Muninn, o par de corvos mensageiros de Odin, que sobrevoam por toda a Midgard? Incrivelmente o significado dos nomes Huginn e Muninn no idioma nórdico antigo é “pensamento” e “memória”, respectivamente, duas capacidades que as ciências evolutivas comportamentais estão explorando nessas aves tão surpreendentes.

Este artigo apareceu primeiro em Etologia & Sociobiologia.

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