Em julho de 1656, Benedito de Espinosa (ou Benedict de Spinoza), de 23 anos, foi excomungado da congregação judaica-portuguesa de Amsterdã. Foi o castigo mais severo do herém ou chérem (o mais alto grau de punição dentro do judaísmo) emitido pela comunidade. O documento existente, uma longa e vitriólica diatribe, refere-se às “heresias abomináveis” e às “ações monstruosas” do jovem homem. Os líderes da comunidade, tendo consultado os rabinos e usado o nome hebraico Baruch Spinoza, declararam que, “pelo presente documento, expulsamos, excomungamos, amaldiçoamos e condenamos Baruch Spinoza”. Ele deve ser “expulso de todas as tribos de Israel” e seu nome deve ser “rasurado de tudo abaixo do céu”.
Ao longo dos séculos, houve pedidos para que o herém contra Espinosa fosse suspenso. Mesmo David Bem-Gurion, quando era primeiro ministro de Israel, emitiu um apelo público para “corrigir a injustiça” feita a Espinosa pela comunidade judaica-portuguesa de Amsterdã. No entanto, demorou até o início de 2012 para que a congregação de Amsterdã, por insistência de um de seus membros, aceitasse formalmente a questão de saber se era ou não a hora de reabilitar Espinosa e recebê-lo de volta à congregação que o expulsou com tal prejuízo. Havia, no entanto, uma coisa que eles precisavam saber: devemos ainda considerar Espinosa como um herege?
Infelizmente, o herém, o documento do banimento, não menciona especificamente quais foram as ofensas de Espinosa – na época ele ainda não havia escrito nada – e, então, há um mistério em torno deste fértil evento na vida do futuro filósofo. No entanto, para quem conhece as ideias filosóficas mais maduras de Espinosa, que ele começou a escrever alguns anos depois da excomunhão, sabe que realmente não existe nenhum mistério. Pelos padrões do judaísmo rabínico moderno mais recente – especialmente entre os judeus sefarditas de Amsterdã, muitos dos quais eram descendentes de refugiados convertidos das inquisições ibéricas e que ainda estavam lutando para construir uma comunidade judaica apropriada nas margens do rio Amstel – Espinosa era um herege, e um dos perigosos hereges.
O que é notável é o quão popular este herege permanece quase três séculos e meio após sua morte, e não apenas entre os estudiosos. Os contemporâneos de Espinosa, René Descartes e Gottfried Leibniz, fizeram contribuições extremamente importantes e influentes para o desenvolvimento da filosofia e da ciência modernas, mas você não encontrará muitos cartesianos ou leibnizianistas hoje em dia. Os espinozistas, no entanto, ainda estão entre nós. Eles são não acadêmicos dedicados que se reúnem em sociedades e grupos de estudo, para ler Espinosa em bibliotecas públicas, sinagogas e em centros comunitários judeus. Centenas de pessoas, de várias vertentes políticas e religiosas, aparecem para ter um dia de palestras sobre Espinosa, mesmo tento lido-o ou não. Há romances, poemas, esculturas, pinturas, até peças e óperas dedicadas à Espinosa. E isso é muito bom.
É também uma coisa muito curiosa o porquê que um filósofo português-judeu do século XVII, cujos escritos densos e opacos são notoriamente difíceis de compreender, incite uma devoção tão apaixonada, até mesmo uma obsessão, de um público leigo no século XXI? Parte da resposta é a tensão e o mistério como o centro de sua vida: por que exatamente Espinosa foi tão duramente castigado pela comunidade que o criou e o educou? Igualmente significativo, suspeito, é que todos adoram um iconoclasta – especialmente um radical e corajoso que sofreu perseguição por suas ideias e por seus valores, ainda são tão importantes para nós hoje. Espinosa é um modelo de coragem intelectual. Como um profeta, ele olhou para os poderes instalados com uma honestidade imaculada que revelou verdades sujas sobre a sociedade.
Espinosa é um modelo para a oposição intelectual e para aqueles que tentam fazer com que os cidadãos tomem atitudes contrárias aos seus próprios interesses.
Grande parte da filosofia de Espinosa foi composta em resposta à precária situação política da República Holandesa em meados do século XVII. No final da década de 1660, o período de ‘Liberdade Verdadeira’ – com os regentes liberais e do liberalismo econômico dominando os governos das cidades e das provinciais – estava sob ameaça pela facção conservadora “Orangistas” (assim chamado porque seus partidários favoreceram o retorno do poder centralizado ao Príncipe de Orange) e seus aliados eclesiásticos. Espinosa temia que os princípios da tolerância e da secularidade consagrados no pacto fundação das Províncias Unidas dos Países Baixos estavam sendo destruídos em nome da conformidade religiosa e da ortodoxia política e social. Em 1668, seu amigo e colega, Adriaan Koerbagh, foi condenado por blasfêmia e subversão. Ele morreu em sua cela no ano seguinte. Em resposta, Espinosa escreveu o “escandaloso” Tratado Teológico-Político, publicado em 1670.
Os pontos de vista de Espinosa sobre deus, religião e sociedade não perderam nada de sua relevância. Num momento em que o cidadãos dos Estados Unidos parecem estarem dispostos a negociar suas liberdades em troca de segurança, quando políticos falam de proibir de um país as pessoas de uma certa fé e quando um religioso exerce uma maior influência em questões de direito e política pública, a filosofia de Spinoza – especialmente a da sua defesa de democracia, liberdade, secularidade e tolerância – nunca foi mais conveniente. Em sua angústia sobre a deterioração da situação política da República Holandesa, e apesar do perigo pessoal que enfrentou, Espinosa não hesitou em defender corajosamente os valores do Iluminismo que ele, juntamente com muitos de seus compatriotas, mantinham consigo. Em Espinosa podemos encontrar inspiração para a resistência à autoridade opressiva e um modelo completo para a oposição intelectual contra aqueles que, através do encorajamento de crenças irracionais e da manutenção da ignorância, tentam fazer com que os cidadãos atuem contra os seus próprios interesses.
A filosofia de Espinosa é baseada em uma rejeição do deus que prega as religiões abraâmicas. Seu deus não possui todas as características psicológicas e morais de uma deidade providencial transcendente. O deus de Espinosa na obra-prima filosófica Ética, de 1677, não é uma espécie de pessoa. Ele não tem crenças, esperanças, desejos ou emoções. E o deus de Espinosa também não é um bom legislador, sábio e justo, que recompensará aqueles que obedeceram os seus mandamentos e castigará aqueles que se desviaram deles. Para Espinosa, deus é a Natureza, e tudo o que existe é Natureza (sua frase é Deus sive Natura, “Deus ou Natureza”). Tudo o que existe, existe na Natureza, e acontece dentro de uma necessidade imposta pelas leis da natureza. Não há nada além de Natureza e não há desvios na ordem da Natureza – os milagres e o sobrenatural são uma impossibilidade. [Colocamos deus e Natureza em itálico para se referir ao deus de Espinosa.]
Não há valores na Natureza. Nada é intrinsecamente bom ou ruim, nem a Natureza ou qualquer coisa na Natureza existe por causa de algum propósito. Seja o que for, isso apenas é. No início de Ética, Espinosa diz que “todos os pré-concepções que empreendo em aqui expor dependem disso: que os homens geralmente supõem que todas as coisas naturais agem, como fazem os homens, por causa de um fim; de fato, eles consideram como certo que o próprio deus controle todas as coisas para um certo fim; por isso eles dizem que deus fez todas as coisas para o homem, e homem para que ele possa adorar a deus”.
Espinosa é muitas vezes rotulado de “panteísta”, mas “ateu” é um termo mais apropriado. Espinosa não divina a natureza. A natureza não é objeto de reverência religiosa ou de devoção religiosa. “O homem sábio”, diz ele, “procura entender a natureza, e não se embasbacar por ela com um idiota.” A única atitude apropriada que leva em direção a deus ou a Natureza é um desejo de conhecê-los através do intelecto.
A eliminação de um deus providencial ajuda a lançar dúvidas sobre o que Espinosa considera como uma das doutrinas mais perniciosas promovidas pelas religiões organizadas: a imortalidade da alma e o julgamento divino que será realizado de em algum modo em mundo futuro. Se uma pessoa acredita que deus recompensará os virtuosos e punirá os viciosos, a sua vida será governada pelas emoções de esperança e medo: a esperança de que o próprio esteja entre os eleitos, e o temor que o próprio esteja destinado a uma condenação eterna. Uma vida dominada por tais paixões irracionais é, nos termos de Espinosa, uma vida de “escravidão” ao invés de uma vida de liberdade racional.
As pessoas que são conduzidas pela paixão e não pela razão são facilmente manipuladas pelos eclesiásticos. Foi isto que tanto preocupou Espinosa no final da década de 1660, quando elementos mais repressores e intolerantes na Igreja Reformada ganharam influência na Holanda. Continua a ser uma ameaça para a democracia secular e Iluminada de hoje, já que os sectários religiosos exercem uma influência perigosa na vida pública.
A fim de solapar essa interferência religiosa nos assuntos civis e na moralidade pessoal, Espinosa atacou a crença na vida após a morte de uma alma imortal. Para Espinosa, quando você está morto, você está morto. Pode haver uma parte da mente humana que é “eterna”. As verdades da metafísica, da matemática, etc., aquelas que se adquire durante nosso tempo de vida e que agora podem pertencer à mente de alguém certamente permanecerão logo que morrerem — são, afinal, verdades eternas —, mas não há nada pessoal sobre elas. As recompensas ou benefícios que esse conhecimento traz são para este mundo, não um suposto mundo do por vir.
Quanto mais se conhece a Natureza, e especialmente sobre si mesmo enquanto ser humano, quanto mais se consegue evitar os ataques e as flechadas de uma sorte ultrajante, para navegar dos obstáculos para a felicidade e o bem-estar que uma pessoa que vive na Natureza necessariamente enfrenta. O resultado de tal sabedoria é a paz mental: se está menos sujeito aos extremos emocionais que normalmente acompanham os ganhos e as perdas que a vida inevitavelmente traz, e não se preocupa mais ansiosamente com o que virá após a morte. Como Espinosa coloca com eloquência, “o homem livre pensa menos na morte, e sua sabedoria é uma meditação sobre a vida e não sobre a morte”.
O clero que procura controlar a vida dos cidadãos tem outra arma em seu arsenal. Eles apregoam que existe um único livro que revelará a palavra de deus e o caminho para a salvação, e que eles são seus únicos intérpretes autorizados. Na verdade, Espinosa afirma: “atribuem ao Espírito Santo quaisquer que sejam as suas fantasias selvagens inventadas”.
Uma das doutrinas mais famosas, influentes e incendiárias de Espinosa diz respeito à origem e ao status das Escrituras. A Bíblia, argumenta Espinosa no Tratado Teológico-Político, não foi literalmente autoria de deus. Deus ou a Natureza é metafisicamente incapaz de proclamar ou ditar, e muito menos escrever, qualquer coisa. As Escrituras não são “uma mensagem para a humanidade enviada por Deus”. Pelo contrário, é um documento muito mundano. Textos de vários autores de vários contextos socioeconômicos, escritos em diferentes pontos durante um longo período de tempo e em diferentes circunstâncias históricas e políticas, foram transmitidos por gerações em cópias após cópias após cópias.
E finalmente, uma seleção desses escritos foi juntada (com uma certa arbitrariedade, Espinosa insiste) no período do Segundo Templo (o Segundo Templo, período do segundo templo em Jerusalém, construído pelas tribos de Sião depois do exílio da Babilônia), provavelmente sob a redação de Esdras (ou Ezra, em hebreu) que foi apenas parcialmente capaz de sintetizar suas fontes e criar delas uma obra única. Esta coleção imperfeitamente composta esteve em si sujeita a mudanças que se infiltraram furtivamente no texto durante o processo de transmissão de muitos séculos. A Bíblia como a temos é simplesmente uma obra de literatura humana, e uma “defeituosa, mutilada, adulterada e inconsistente” obra. É uma raça mista desde a sua criação e corrompida durante sua descendência e preservação, uma mistura de textos por mãos diferentes, de diferentes períodos e para diferentes públicos.
Espinosa complementa sua teoria das origens humanas da Bíblia com uma contabilidade igualmente deflacionária de seus autores. Os profetas não eram indivíduos especialmente instruídos. Eles não desfrutavam de um alto nível de educação ou sofisticação intelectual. Eles certamente não eram filósofos, físicos ou astrônomos. Não há verdades sobre a natureza ou sobre o cosmos que possam ser encontradas em seus escritos (Josué — ou Joshua em hebraico — acreditava que o Sol girava em torno da Terra). Nem são uma fonte de verdades metafísicas ou mesmo teológicas. Os profetas costumam ter crenças ingênuas, ou mesmo filosoficamente falsas, sobre Deus.
Eles eram, no entanto, indivíduos moralmente superiores com imaginações vívidas, e, portanto, há uma verdade a ser extraída de toda a Escritura, a que vem da alta e clara forma não mutilada. O ensinamento último das Escrituras, seja a Bíblia hebraica ou os Evangelhos cristãos, é, de fato, bastante simples: praticar a justiça e a bondade amorosa aos seus semelhantes.
Essa mensagem moral básica é o resultado final de todos os mandamentos e a lição de todas as histórias da Escritura, sobrevivendo inteira e despreocupada através de todas as diferenças de linguagem e todas as cópias, alterações, fraudes e erros que penetraram no texto ao longo dos séculos. Está lá, insiste Espinosa, nos profetas hebreus (“Não busque vingança ou rancor contra um dos seus povos, mas ame o seu próximo como a si mesmo” [Levítico 19:18]) e nas cartas de Paulo (“Ele quem ama o seu próximo satisfaz todas as reivindicações da lei” [Romanos 13: 8]). Espinosa escreve: “Posso dizer com certeza que, em matéria de doutrina moral, nunca observei uma falha ou um leitura variante que possa dar origem a obscuridade ou dúvida em tal ensinamento”. A doutrina moral é a mensagem clara e universal da Bíblia, pelo menos para aqueles que não são impedidos por preconceitos, superstições ou sede de poder de lê-la corretamente.
Espinosa acredita que existe algum sentido em que a Bíblia possa ser “divina”? Certamente, não no sentido central das versões fundamentalistas, ou mesmo tradicionais, das religiões abraâmicas. Para Espinosa, a divindade das Escrituras — na verdade, a divindade de qualquer escrito — é uma propriedade puramente funcional. Uma obra de literatura ou de arte é “sagrada” ou “divina” apenas porque é eficaz na apresentação da “Palavra de Deus”.
Se A Tempestade move alguém para a justiça e a misericórdia, ou Tempos Difíceis move para a amor e a caridade, então essas obras também são divinas e sagradas.
O que é a “palavra de deus”, a “lei divina universal”? É precisamente a mensagem que permanece “não mutilada” e “não corrompida” ao longo dos textos bíblicos: ame seus vizinhos e trate-os com justiça e caridade. Mas as Escrituras, talvez mais do que qualquer outra obra da literatura, se destaca em motivar as pessoas a seguir essa lição e emular sua representação (ficcional) da justiça e misericórdia de Deus em suas vidas. Espinosa observa que “uma coisa é chamada de sagrada e divina quando seu propósito é promover a piedade e a religião, e é sagrado apenas enquanto o homem a usar de maneira religiosa”. Em outras palavras, a divindade das Escrituras reside no fato de que é, acima de tudo, uma obra de literatura especialmente moralmente edificante.
E, no entanto, apenas por esta razão, as Escrituras não serão a única obra da literatura que é “divina”. Se ler A Tempestade de William Shakespeare ou Mark Twain em As Aventuras de Huckleberry Finn se move para a justiça e a misericórdia, ou se ler Tempos Difíceis de Charles Dickens inspira alguém para o amor e a caridade, essas obras também são divinas e sagradas. A palavra de deus, diz Spinoza, não está “confinada dentro da bússola de um número determinado de livros”.
Em uma carta a Espinosa, o cartesiano Lambert van Velthuysen (leia a correspondência aqui) argumenta que, de acordo com o Tratado Teológico-Político, “o Alcorão também deve ser colocado no nível de Palavra de Deus”, já que “os turcos (…), em obediência ao comando de seu profeta, cultivam essas virtudes morais sobre as quais não há desacordo entre as nações”. Espinosa reconhece a implicação, mas não a vê como uma objeção. Ele está perfeitamente disposto a permitir que existam outros profetas verdadeiros além dos das Escrituras e de outros livros sagrados fora dos cânones judeus e cristãos.
A mensagem moral da Bíblia e suas prescrições sobre como temos que tratar outros seres humanos representam a “Palavra de Deus” autêntica. Espinosa insiste, então, que a verdadeira piedade ou religião não tem nada a ver com cerimônias ou rituais. Restrições alimentares, práticas litúrgicas e sacrificais, orações — todos esses elementos típicos das religiões organizadas são comportamentos supersticiosos que, qualquer que seja sua origem histórico-política, estão agora desprovidos de qualquer razão de ser. Eles continuam a ser promovidos pelo clero apenas para criar adoradores dóceis e obedientes.
O que Espinosa considera como “verdadeira religião” e “verdadeira piedade” não requer crença em eventos históricos, incidentes sobrenaturais ou doutrinas metafísicas, e não prescreve ritos devocionais. Não exige aceitar qualquer teologia particular da natureza de deus ou afirmações filosóficas sobre o cosmos e suas origens. A lei divina nos dirige apenas sobre como se comportar com justiça e caridade para com outros seres humanos. “[Nós devemos] defender a justiça, ajudar os indefesos, não assassinar, não cobiçar bens de ninguém, e assim por diante”. Todos os outros rituais ou cerimônias dos mandamentos da Bíblia são práticas vazias que “não contribuem para a bem-aventurança e a virtude”.
A verdadeira religião não é mais do que o comportamento moral. Não é o que você acredita, mas o que você faz é que é importante. Escrevendo para secretário da Royal Society Henry Oldenburg em 1675, Espinosa diz que “a principal distinção que faço entre religião e superstição é que esta última se baseia na ignorância, a primeira na prudência”.
O ideal político que Espinosa estimula no Tratado Teológico-Político é uma comunidade secular e democrática, livre de intromissão por eclesiásticos. Espinosa é um dos defensores mais eloquentes de toda a história da liberdade e da tolerância. O objetivo final do Tratado é consagrado tanto no subtítulo do livro como no argumento do seu capítulo final: mostrar que “a liberdade de filosofar pode não só ser permitida sem perigo para a religiosidade e a estabilidade da república, mas que ela não pode ser rejeitada sem destruir a paz da república e a própria religiosidade”.
Todas as opiniões, seja qual forem, incluindo opiniões religiosas, devem ser absolutamente livres e sem obstáculos, tanto por necessidade como por direito. É impossível que a mente esteja completamente sob o controle de outra pessoa; pois ninguém pode transferir para outro seu direito natural ou faculdade de argumentar livremente e de formar seu próprio julgamento qualquer que seja o assunto, nem pode ser obrigado a fazê-lo. Na verdade, qualquer esforço de um soberano para dominar as crenças e as opiniões dos cidadãos só pode ser contraproducente, pois, em última instância, servirá para minar a própria autoridade do soberano. Em uma passagem que é, obviamente, certa e extraordinariamente ousada para o seu tempo, Espinosa escreve:
“Um governo que tenta controlar as mentes dos homens é encarado como tirânico e um soberano é considerado errado em seus domínios e infringe os direitos deles quando procura prescrever para cada homem o que ele deve ser aceito como verdadeiro e rejeitado como falso e quais são as crenças que o inspirará com devoção a Deus. Todos estes são assuntos pertencentes ao direito individual, que nenhum homem pode abrir mão, mesmo que assim o deseje”.
Um soberano certamente pode tentar limitar o que as pessoas pensam, mas o resultado de uma política tão vã e temerária seria criar apenas ressentimento e oposição ao seu poder. Ainda assim, a tolerância das crenças é a primeira coisa. O caso mais difícil diz respeito à liberdade dos cidadãos para expressar essas crenças, tanto na fala como na escrita. E aqui Espinosa vai além de qualquer outra pessoa no século 17:
“O fracasso total presenciará qualquer tentativa em uma comunidade que force os homens a falar apenas conforme prescrito pelo soberano apesar das opiniões diferentes e opostas desses homens… O governo mais tirânico será aquele no qual ao indivíduo seja negado a liberdade de se expressar e de comunicar aos outros o que ele pensa, e um governo moderado é aquele em que essa liberdade é concedida a cada homem.”
O argumento de Espinosa para a liberdade de expressão baseia-se tanto no direito (ou poder) dos cidadãos de falar como eles desejam, como também no fato de que (como no caso da crença) seria contraproducente para um soberano tentar conter essa liberdade. Não importa qual leis sejam promulgadas contra o discurso e outros meios de expressão, os cidadãos continuarão a dizer o que eles acreditam, só que agora eles o farão em segredo. Qualquer tentativa de suprimir a liberdade de expressão, mais uma vez, apenas enfraquecerá os laços de lealdade que unem os subordinados ao soberano. Na opinião de Espinosa, leis intolerantes levam, em última instância, a raiva, vingança e sedição.
Não há criminalização de idéias no estado bem organizado. A liberdade de filosofar deve ser respeitada pelo bem de um Estado saudável, seguro e pacífico, e do progresso material e intelectual. Espinosa entende que haverá algumas conseqüências desagradáveis decorrentes do amplo respeito pelas liberdades civis. Haverá disputas públicas, mesmo faccionalismo, à medida que os cidadãos expressem suas opiniões opostas sobre questões políticas, sociais, morais e religiosas. No entanto, isso é o que vem com uma sociedade saudável, democrática e tolerante.
“O Estado não pode seguir um curso mais seguro do que respeitar a religiosidade e a religião como consistindo exclusivamente na conduta do exercício da caridade, e que o direito do soberano, tanto nas esferas religiosas como seculares, deve ser restrito às ações dos homens, sendo a todos permitido pensar o que ele querem dizer e dizer o que pensam.” Esta frase, uma declaração maravilhosa do princípio moderno da tolerância, é talvez a verdadeira lição do Tratado, e deve ser nisso pelo qual Espinosa é melhor lembrado.
Quando, em 2012, um membro da congregação portuguesa-judaica em Amsterdã insistiu que finalmente era hora de a comunidade considerar a revogação do herém de Espinosa, a Ma’amad ou Mahamad (os líderes leigos, ou o grupo atuante na liturgia judaica junto aos sacerdotes) da comunidade sondou um conselho externo por tal decisão importante. Eles convocaram um comitê — eu mesmo, junto com outros três estudiosos — para responder a várias questões sobre as circunstâncias filosóficas, históricas, políticas e religiosas da proibição de Espinosa. Embora eles não nos pedissem para recomendar qualquer ação particular, eles queriam nossas opiniões sobre quais poderiam ser as vantagens e desvantagens de cancelar a proibição.
Enviamos nossos relatórios e passamos mais de um ano sem notícias. Finalmente, no verão de 2013, recebemos uma carta informando-nos de que o rabino da congregação decidiu que o herém não devia ser revogado. Na opinião dele, Espinosa foi de fato um herege. Ele acrescentou que, embora possamos apreciar a liberdade de expressão no domínio cívico, não há nenhuma razão para esperar tal liberdade no mundo do judaísmo ortodoxo. Além disso, perguntou ele retoricamente, os líderes da comunidade hoje são muito mais sábios e melhores informados sobre o caso de Espinosa do que os rabinos que o puniram primeiro?
Sem dúvida, Espinosa teria considerado todo o caso divertido. Se perguntado se ele gostaria de ser readmitido para “o povo de Israel”, ele provavelmente teria respondido: “Faça o que quiserem. Isso não me interessa em nada”.
De Steven Nadler para o Aeon. Steven Nadler é Professor de Filosofia na Universidade William H Hay II de Wisconsin-Madison. Seus livros incluem Spinoza: A Life (1999) e A Book Forged in Hell: Spinoza’s Scandalous Treatise and the Birth of the Secular Age (Um livro forjado no inferno: o tratado escandaloso de Espinosa e o nascimento da era secular) (2011).