Surgem evidências que as pegadas químicas que as formigas deixam para comunicar aonde ir talvez não sejam produzidas por elas, mas pelo microbioma no interior do abdômen desses animais.
Estamos apenas começando a nos aprofundar na complexa relação que os humanos têm com os micróbios que nossos corpos hospedam. Agora parece que os insetos podem ter um relacionamento similarmente complexo.
Esta descoberta fascinante e bizarra diz respeito à espécie de formigas Atta sexdens rubropilosa, conhecida popularmente como saúva ou formiga-cortadeira, nativa das Américas — pode ser encontrada do Texas, nos Estados Unidos, ao norte da Argentina, na América do Sul.
Essas formigas — e várias outras — produzem um tipo de composto químico chamado pirazina. É um ingrediente chave nas trilhas de feromônio que esses insetos sociais deixam para as outras formigas.
Ter um rastro de cheiro ajuda a guiar as outras formigas até as fontes de comida e de volta ao formigueiro.
Biólogos da Universidade de São Paulo (USP), no Brasil, descobriram agora que uma bactéria chamada Serratia marcescens, que vive no intestino da formiga-cortadeira, está de alguma forma envolvida na produção desse cheiro. E eles encontraram esta conexão em várias colônias de formigas.
O que eles têm menos certeza é como isso funciona.
“São as trilhas de feromônios produzidas pela bactéria S. marcescens, ou a S. marcescens só ajudam de alguma forma em todo o processo?” diz a química microbiana Mônica Tallarico Pupo à Agencia Fapesp. “Pretendemos investigar isso em busca de respostas”.
Para fazer isso, eles coletaram parte de uma colônia de formigas no campo, incluindo a rainha, e as instalaram em laboratório, isolando as bactérias nas formigas e colocando-as em meio de cultura para estudo.
Foi quando o autor principal e doutorando Eduardo Afonso da Silva Junior notou, durante sua pesquisa de doutoramento, que a bactéria cultivada S. marcescens tinha o mesmo cheiro das formigas.
“Decidimos investigar os compostos voláteis produzidos por essa bactéria e descobrimos as pirazinas, entre as quais havia uma molécula não descrita na literatura científica”, disse Pupo.
Segundo Pupo, o principal objetivo do projeto é explorar a microbiota de formigas brasileiras em busca de moléculas naturais que possam dar origem a novos fármacos (leia mais em: agencia.fapesp.br/19498). No entanto, outro objetivo relacionado à ecologia química é investigar a dependência entre os insetos sociais e os microrganismos simbióticos com os quais eles interagem em uma relação mutuamente benéfica.
A descoberta da bactéria que produz a pirazina foi feita por acaso. Os pesquisadores estavam procurando micróbios que pudessem ajudar as formigas a se protegerem de fungos parasitas.
“As folhas levadas aos seus formigueiros por essas formigas cortadores de folhas servem realmente como substrato para o cultivo de Leucoagaricus gongylophorous, a espécie de fungos da qual se alimentam as formigas. No entanto, este sistema é suscetível de causar infecções a elas”, explicou Pupo.
Os experimentos descritos no artigo envolveram colônias de Atta sexdens rubropilosa coletadas no campus da USP em Ribeirão Preto. Quando os cientistas conseguiram coletar a rainha, parte da colônia foi transportada para o laboratório, e todas as bactérias encontradas na superfície e no interior dos insetos foram isoladas, caracterizadas e colocadas em meio de cultura.
“Em alguns casos, outras espécies patogênicas que podem prejudicar a viabilidade da colônia de formigas crescem no fungo que elas comem. As bactérias simbióticas produzem compostos que podem matar os fungos parasitas sem danificar a fonte de alimento. Nós nos propusemos a identificar esses compostos”.
Foi durante este processo que Silva Junior percebeu que, quando as bactérias S. marcescens eram cultivado em laboratório liberavam um forte aroma que se assemelhava ao cheiro das formigas mantidas no mesmo laboratório.
“Encontramos pirazinas e bactérias nas glândulas venenosas das formigas. Não sabemos ao certo se sua síntese é compartilhada: talvez o microorganismo produza os compostos aromáticos e as formigas os armazenem em suas glândulas”.
Outras formigas também usam pirazinas. As formigas-de-fogo Solenopsis invicta usam-nas para sinalização de alarme, enquanto a formiga de Madagascar Eutetramorium mocquerysi as utiliza para sinalização de trilhas.
O mesmo acontece com as formigas europeias Manica rubida, Myrmica rubra e Tetramorium caespitum — o que podem causar confusão quando se misturam e começam a seguir o rastro de outra espécie que vive nas proximidades.
A equipe pretende examinar mais espécies de formigas para determinar se eles conseguem encontrar bactérias semelhantes. Eles também pretendem estudar as formigas-cortadeiras em maior detalhe para conduzir experimentos e refinar o entendimento sobre o mecanismo de produção de pirazina.
“Planejamos testar técnicas para remover as bactérias das formigas e observar se os compostos continuam a ser produzidos”, disse Pupo.
A pesquisa foi realizada em parceria da USP com cientistas da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, sob a égide de um Projeto Temático apoiado pela FAPESP e pelo Instituto Nacional de Saúde dos EUA (NIH), foi publicada no periódico Scientific Reports do grupo Nature.