Amizades fracas
Consideremos agora as amizades fracas. Há um antigo epigrama do grego poeta Práxila (que floresceu em 451 AEC) que nos diz:
De Admeto, amigo, aprende a história
Procura conhecer os bravos
Mantém distância dos covardes,
Porque os covardes têm pequena gratidão
(Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos – IN: Poesia Grega e Latina. São Paulo: Cultrix, 1964)
Admeto foi um dos argonautas e rei mítico de Feras, na Tessália. Tendo morrido, os deuses permitiram que ele voltasse do Hades caso encontrasse alguém para substitui-lo. Apenas sua amada, Alceste, se dispôs a isso, salvando-o. Quando Admeto se viu novamente entre os vivos, soube que a condição para que Alceste retornasse era que alguém a substituísse no Hades, e nem seu pai, muito velho, se dispôs a ajudá-lo. O epigrama, que supõe o conhecimento dessa história, nos conta uma dura verdade. Às vezes, alguém nos tem sentimentos de amizade genuínos. Entretanto, se seu caráter for inclinado ao medo, dificilmente conseguirá nos apoiar em meio a uma dificuldade, já que o medo falará mais alto. Assim, é importante verificar quais de nossos amigos são dominados por essa emoção para que saibamos que não poderemos contar com eles em situações cruciais.
Verdadeiros amigos se descobrem por ações, não palavras
Para vermos quem são nossos verdadeiros amigos, devemos procurar atentar para as ações, não para as palavras. Quais são as pessoas que efetivamente nos ajudam no dia a dia e em nossas dificuldades? Quando passamos a olhar as por esse ponto de vista, começamos a notar que muitas pessoas que às vezes quase passam despercebidas para nós são verdadeiramente nossas amigas, enquanto aquelas que temos em alta conta ou são falsos amigos ou pessoas que são indiferentes a nós.
No nosso dia a dia, são nossos amigos aqueles que nos ajudam em nosso trabalho, que labutam conosco fazendo a comida, as compras, limpando a casa, nos acompanhando em todos os momentos e nos socorrendo nos momentos difíceis, pondo-se ao nosso lado quando irrompem diante de nós os inimigos.
Como disse Aristóteles, quem quiser ser amigo, que coma conosco um fardo de sal (Ética Nicomaqueia 1156b). Isso significando tanto conviver por muito tempo (o tempo que leva para acabar um fardo de sal numa casa) quanto atravessar conosco dificuldades e amarguras. Em outros termos, os laços afetivos se fortalecem no tempo e nas vicissitudes, e neles também se esgarçam e se rompem.
Por outro lado, aqueles que nunca de fato conviveram conosco, que nunca estiveram conosco senão umas poucas vezes, que não vivem nossa realidade nem nosso cotidiano, são pessoas que nos são amigáveis, mas que não devemos confundir com nossos verdadeiros amigos.
Os demais humanos, os colegas de trabalho, os conhecidos, os vizinhos, os transeuntes, que os vejamos tal qual o que são de fato, nossos colegas humanos, que muitas vezes têm menos coisas em comum conosco que outros animais ou as árvores, mas que, é claro, devemos tratar com toda consideração e amistosidade.
Fantasia romântica
Outra fonte de ilusão que nos impede de distinguir entre amigos verdadeiros e falsos é a fantasia romântica que consiste em pensar que alguém nos ama por alguma característica intrínseca nossa, que nos separa do resto dos humanos. Isso é ilusão, pois não somos especiais nem insubstituíveis: somos qualquer um e, como disse Marco Aurélio, em breve esqueceremos de tudo, em breve todos se esquecerão de nós (7.21). Ou, como li em alguma parte recentemente, amanhã seremos uma foto na mesa de alguém. Depois nem sequer isso.
Muitos religiosos têm a tendência de ver nos laços efetivos objetos metafísicos, considerando que tais laços se criam entre pessoas especiais, que os laços tornam as pessoas especiais. A visão dos estoicos é que os laços são criados primeiramente entre mãe e filhas (os), depois no seio da família. Mais tarde, entre os adultos, por ideias e obras comuns.
Nossa família cósmica
Embora devamos distinguir precisamente entre o verdadeiro e o falso amigo, não devemos excluir quem quer que seja dos sentimentos de amistosidade. Os estoicos creem que os laços de afeto podem se estender a todos os humanos. Na prática, claro, nunca realizaremos isso, mas temos que manter a porta aberta para os humanos, para que eles tenham uma chance de entrar na comunidade.
Aprendi essa lição quando era criança. Numa véspera de natal (eu devia ter uns 9 anos), fomos eu e minha família na missa. Na entrada da catedral, em Petrópolis, havia uma criança pequena, de uns seis anos, imunda, em trapos, seminua, brincando numa caixa de papelão. As pessoas entravam e passavam por ela, ignorando-a. Bem novo, compreendi a contradição de tudo aquilo e nunca mais fui a uma missa. Desde então, quando me convidam para celebrações religiosas, eu pergunto: A quem vamos receber? A quem vamos ajudar? E sempre obtive como resposta o silêncio.
Recentemente, na Inglaterra, uma amiga me convidou para participar do culto dela. E eu fiz a mesma pergunta. E ela disse: é uma cerimônia aberta a toda comunidade, independente de crença. Oferecemos comida e bebida, conversamos. Eu perguntei a ela se era comum esse tipo de coisa na Inglaterra, e ela disse que não, que era ideia dela. Eu pensei, depois de 50 anos, eu encontrei alguém que pensa como eu. Se eu morrer agora, morrerei feliz. Eu disse a ela: Adorei, se você fosse a sacerdotisa, eu viria sempre aqui e me uniria a essa culto, não importa qual fosse a religião. Minha opinião sobre religião coincide com aquela de Plínio, o velho: Deus est mortali iuuare mortalem (Deus é o mortal ajudar ao mortal – História Natural 2.18), e reflete o que eu, Aldo, penso sobre a verdadeira amizade entre os humanos: viver cooperando uns com os outros e ajudando-se mutuamente. Não há pessoas especiais que mereçam mais nossa ajuda e nosso apoio que outros em razão de um suposto amor místico que brilha sobre elas. Todos os humanos são igualmente merecedores de nossa amizade e de nosso apoio. Comecemos por esses que estão mais próximos e à nossa volta.
Não há solidão no Cosmos
Marco Aurélio nos diz que é preciso ficarmos de pé por nós mesmos e não sermos amparados (4.12). Isso foi algo que Marco teve que fazer realmente, pois todos os seus grandes amigos haviam falecido ao final da década de160, quando ele tinha cerca de 47 anos (McLynn, Marcus Aurelius. Londres: Vintage, 2010, p. 112). Sêneca também nos diz que o sábio ideal precisa de amigos, mas deles não necessita (Sêneca, Cartas a Lucílio, IX). O sábio estoico, sabemos, é um ideal para nos guiar, e não para realizarmos, assim como uma estrela guia o navegante para algum porto e não para si mesma. Portanto, aplicando a todos os humanos o que diz aí Sêneca, podemos dizer que, embora nossa natureza nos incline para o afeto e para a amizade, muitas vezes ela não está realmente disponível para nós. Nesse caso, devemos nos lembrar que somos seres cósmicos. Pertencemos por nascença, e independentemente do que fizermos, à comunidade cósmica. Isso nos faz irmãos dos cães, dos pássaros, das árvores, das montanhas e de tudo que há. Nunca estamos verdadeiramente sozinhos. A solidão em última análise é uma ilusão.
Entre os humanos adultos, dissemos, as crenças cumprem um papel de divisão. Separamos nossos amigos conforme as crenças que consideramos importantes e vemos como adversários aqueles que põem em xeque nossas crenças (falei sobre isso aqui). Entretanto, nossa relação com outros animais e seres é muito mais fácil e amistosa. Muitos animais são amigáveis por natureza (o que ele explica o sucesso de cães e gatos entre os humanos), e a Natureza muitas vezes nos sorri e nos embala como uma verdadeira mãe, como quando estamos em praias, jardins, montanhas, quando temos tranquilidade para contemplarmos o céu noturno, como quando estamos sozinhos em nosso quarto e sentimos no silêncio da noite o pulsar de nossas veias (nosso corpo, como nós, é parte integrante da natureza e nos acompanhará até a morte). Tomando ciência disso, jamais estaremos sós, e nossa alma estará em permanente estado de felicidade e tranquilidade.
Amizades terminam
Pessoas que são realmente nossas amigas podem deixar de sê-lo pelas ideias. Pessoas com as quais nos identificamos pelas ideias podem mudar suas crenças, assim como nós podemos mudar as nossas. Se as ideias que se modificam são sobre coisas essenciais para os amigos, constituindo suas cosmovisões, é frequente ocorrer um estranhamento. Por exemplo, não reconhecemos mais aquele amigo que subitamente se torna um fanático religioso ou político. Somos, em última análise, as ideias às quais damos assentimento. Como Epicteto nos diz em Diatribes 4.7.14.4, nossas opiniões são as nossas únicas posses reais, que carregamos para onde quer que vamos, e que ninguém nos pode tirar (Cf. Diatribes 4.7.35). Nesses casos, é comum que a amizade acabe. E isso não é uma tragédia, mas um dos fatos da vida, já que tudo no Cosmos acaba. Entretanto, naturalmente nos sentimos tristes pela quebra dos laços, mas a reflexão e o tempo nos encarregarão de nos curar. Temos, então, que nos abrir para novas amizades e virar a página.
Conclusões
Não devemos, entretanto, seguir ao pé da letra tudo o que foi dito acima. O bicho humano é imperfeito, e nossas relações (tirando, algumas vezes, aquelas entre mães e filhos, pais e filhos) são condicionais. Isso significa que nenhuma amizade é perfeita, e ocasionalmente podemos nos surpreender adulando ou constrangendo um amigo quando dominados por alguma paixão. Também pode ocorrer que fiquemos confusos e não saibamos, em um momento determinado, dar o devido valor a um amigo, ou podemos mesmo deixá-lo na mão por erro de juízo ou fraqueza.
Este texto, portanto, objetiva não somente distinguir entre amizades falsas, fracas e verdadeiras, mas também guiar a nós mesmos quanto a sermos amigos melhores.
Temos a tendência de querer agradar nossos amigos, e às vezes exageramos nos elogios. Epicteto, porém, observa que o verdadeiro sábio não elogia ninguém (Manual, 48). Isso significa que ele não se perde em grandiloquências para querer agradar este ou aquele, mas procura as palavras certas para descrever o que realmente acha de alguma coisa. Por exemplo, ao invés de dizer que um texto é extraordinário, o que é uma hipérbole, é melhor dizer que ele é original, crítico, relevante. Assim, ao invés de um mero elogio, descrevemos o que realmente achamos. O mesmo vale para a crítica: por exemplo, descrever cuidadosamente as imperfeições de um texto para que o autor o melhore.
Assim, para usarmos os critérios delineados acima, temos, por um lado, que ver a frequência das repetições. Alguém é constantemente adulador? Alguém é constantemente abusivo? Alguém repetidamente nos deixa na mão?
Além do mais, boas amizades podem surgir a partir de situações criadas por interesses de toda natureza, comerciais, sexuais, recreativos. Não importa a situação, a atração natural pode surgir.
E nem toda amizade tem que ser a amizade com A maiúsculo. Podemos dizer que Epicteto, diferentemente dos clássicos, começou a pôr entre parêntesis essa idealização da amizade que havia entre gregos e romanos. Epicteto parece enfatizar um afeto profuso entre todos os humanos quando, por exemplo, nos fala do festival que é a vida social (Epict. Diatribes 4.1.105- 106). Paremos, assim, de buscar amizades ideais, e olhemos em volta para identificar as reais. Estas últimas são evidenciadas por ações, pelo interesse, pela preocupação diária, e não por palavrórios bonitos.
O que destrói as amizades são situações flagrantes, pontos de ruptura. Esses pontos podem se evidenciar tanto após uma longa fileira de sinais em relação aos quais preferimos fazer vista grossa e que, de repente, não mais podemos ignorar, quanto subitamente, quando de uma só vez nos surpreendemos no seio de uma grande farsa, e a ficha cai. Quando isso ocorre, sim, perdemos nosso amigo. Vinicius descreveu maravilhosamente esse momento de cisão em seu Soneto de Separação:
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama
De repente não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente
Por fim, devemos ter alegria de buscar a amizade e de beneficiar sem medir e sem nos prejudicar. “Eu sou dadivoso: com prazer, como amigo, eu presenteio os amigos”, assim se define o personagem Zaratustra de Nietzsche. Ser generoso vale por si, e é signo de alma grande. Ser mesquinho é o oposto. Algumas vezes seremos passados para trás ou traídos, mas não importa. Sigamos adiante. Mantenhamos nossa alma intacta. Quem cometeu o malfeito tornou-se malfeitor. Encontra-se por si mesmo julgado e condenado.
Assim, se nossos amigos cometerem deslizes e pedirem desculpas, vamos perdoá-los. Se não o fizerem espontaneamente (talvez não tenha ciência do que fizeram ou talvez tenham vergonha de nos falar) vamos até eles, lhes dando oportunidade de pedirem desculpas. Se ainda assim não o fizerem e se mantiverem altivos, então é a hora do adeus.
A vida nos prega peças e ficamos vulneráveis, quando, então, pedimos
ajuda a nossos amigos, e eles, se forem verdadeiros nos ajudam. Mas, por outro lado, cada um de nós deve buscar, ao máximo, bastar a si mesmo.
Nunca compreendemos ninguém perfeitamente. Decepções sempre ocorrerão.
Não há dúvidas quanto a isso. O que de melhor podemos fazer é continuar com nossa amizade com o Cosmos e apreciar as dádivas dos Deuses.
Hoje, temos um certo amigo para conversar e compartilhar. Amanhã talvez não mais o tenhamos, por uma série de razões. Apreciemos a amizade enquanto ela dura. Às vezes, durará um cafezinho. Às vezes, aquele instante fortuito em que uma desconhecida passa por nós, nos olha nos olhos e sorri. Outras, meses, anos, décadas. Rarissimamente, a vida toda.
Por melhores que sejam nossos critérios, tudo o que é humano é incerto. A vida passa e não compreendemos quase nada do que passou. Cada um de nós faz o que lhe parece o melhor. E pode ter alguém que goste do que é feito e queira se aproximar. Devemos, então, dar graças aos Deuses e apreciar o momento, cientes de sua efemeridade.
Esta é a segunda parte do artigo Os estoicos e a questão da amizade. Clique aqui para ler a primeira.