Os estoicos e a questão da amizade: parte I

Aldo Dinucci

A questão

Muito se falou e se fala sobre a amizade, mas muito pouco se falou sobre a falsa amizade. Esse é um tema de particular importância, pois, como seres comunitários, prezamos naturalmente a amizade, nascemos abertos a ela e em busca de amigos. Entretanto, o mundo em que vivemos é cheio de armadilhas, e não é fácil distinguir o verdadeiro amigo, isto é, aquele que nutre por nós um sentimento de afeição genuíno, do falso amigo, bem como daquele que nutre por nós afeição, mas que, por fraqueza de caráter, não é capaz de nos ajudar em momentos críticos. 

O assunto me é pessoalmente muito caro, por estimar a amizade e colocá-la entre as mais importantes coisas da vida, razão pela qual busquei por critérios que me permitissem discernir entre o verdadeiro amigo e aquele que apenas finge sê-lo, bem como, entre os amigos, aqueles que são capazes de nos ajudar nos momentos e aqueles que nos abandonarão por fraqueza.

De fato, a falta de critérios corretos faz com que elejamos de forma equivocada este ou aquele como amigo, sem que ele de fato o seja, sem que ele sequer pense ser ou mesmo queira parecer tal. 

As seguintes reflexões são resultado de um longo aprendizado, tanto empírico quanto teórico. No que concerne à teoria, debrucei-me particularmente sobre os antigos, em especial, os estoicos antigos. Creio que eles são capazes de nos mostrar a realidade com mais nitidez que os contemporâneos, visto que estes últimos são sempre prisioneiros de ideários religiosos e políticos que os cegam. Mas passemos ao nosso tema.

Definição do falso amigo

Podemos definir o falso amigo é aquele que se aproxima animado por alguma má intenção, por algum fim que não o próprio afeto. Cícero, em seu Sobre a Amizade (VIII, 26-27), nos diz que a amizade supõe um impulso natural, um afeto espontâneo que nasça entre as pessoas que virão a ser amigas. Sem esse impulso natural, a amizade não é possível. O falso amigo é justamente alguém que, ao mesmo tempo em que estimula em nós o desabrochar desse afeto, não guarda em si afeto algum por nós, mas nos vê como um meio para obter um bem material, influência e coisas dessa espécie. Sêneca nos fala mais sobre esses “amigos”:

Alguém obteve um amigo tendo em vista um auxílio para escapar à prisão; quando primeiramente a corrente crepitar, <o amigo> (9) afastar-se-á. Estas são as amizades que o povo chama de “temporárias”; quem foi tomado como amigo por causa da utilidade, agradará por quanto tempo seja útil. Por isto, uma turba de amigos senta-se à volta dos prósperos; ao redor do arruinado há solidão, e fogem os amigos daí onde são testados. Quanto a isto, tantos crimes abomináveis são exemplos, de uns que se afastam por medo, de outros que abandonam por medo. É necessário que início e fim estejam harmonizados entre si. Quem começa a ser amigo porque é vantajoso, também deixa de sê-lo porque é vantajoso. Agradará alguma recompensa em detrimento da amizade se algo nela agrada que não ela mesma. (Sêneca, Carta a Lucílio, IX, Sobre Filosofia e amizade, 8 -9, tradução do latim: Aldo Dinucci)

Na mesma carta, a partir disso, Sêneca define a verdadeira amizade:

Para que me esforço para obter um amigo? Para que eu tenha por quem eu possa morrer, para que eu tenha a quem seguir no exílio, à morte de quem eu me oponha e impeça. Isto que tu descreves, do que se aproxima em vista do que é vantajoso, do que se espera que haja algo a ganhar, é comércio, não amizade. Não duvides que o amor possui algo similar à amizade: que se possa dizer aquele afeto <ser> uma amizade enlouquecida. Acaso alguém ama por causa do lucro? Acaso alguém ama por causa da ambição ou da glória? O próprio amor, por si mesmo indiferente a todas as outras coisas, inflama os espíritos para o desejo da Beleza, não sem esperança de ternura mútua.  E então? A causa do que é digno forma aliança com um afeto torpe? (Sêneca, Carta a Lucílio, IX, Sobre Filosofia e amizade, 10, tradução do latim: Aldo Dinucci)

Entretanto, como reconhecer o falso amigo, aquele que se aproxima de nós por algum interesse outro que não a própria amizade? Podemos dizer que há dois tipos básicos de falsos amigos, aqueles que querem nos controlar através da adulação e aqueles que querem nos controlar pelo constrangimento.

Os aduladores

Sobre os primeiros, o eclético Plutarco nos fala, em sua obra Como tirar vantagem dos inimigos, que muitos amigos, por temerem ferir nossos sentimentos, evitam criticar nossos defeitos, razão pela qual devemos ouvir particularmente os inimigos, que, por não temerem absolutamente ferir nossos sentimentos, muito pelo contrário, falam sobre nós o que verdadeiramente pensam.

Por essa razão, devemos ter a mente aberta para ouvir essas críticas e tirar partido delas, eliminando na medida do possível os defeitos apontados, bem como estimular entre nossos amigos a crítica, para o que devemos praticar a profissão socrática de ignorância, pela qual reconhecemos o caráter precário de toda sabedoria humana, e que de fato tudo o que sabemos nada é em relação ao conhecimento que guarda o mundo.

O adulador é difícil de detectar, pois nos eleva falsamente, transformando nossos defeitos em virtudes e amplificando nossas virtudes. São os chamados concordinos, que assentem a tudo o que dizemos, simulando ter opiniões e ideias idênticas às nossas. Devemos nos pôr em guarda quanto ao prazer que sentimos ao ouvir elogios e sorrisos de concordância. Devemos ser céticos em relação a essas manifestações para que possamos distinguir entre o que é sincero e o que é adulação. Epicteto expressa plena ciência disso em seu Encheiridion:

Sinais de quem progride: não recrimina ninguém, não elogia ninguém, não acusa ninguém, não reclama de ninguém. Nada diz sobre si mesmo – como quem é ou o que sabe. Quando, em relação a algo, é entravado ou impedido, recrimina a si mesmo. Se alguém o elogia, se ri de quem o elogia. Se alguém o recrimina, não se defende. Vive como os convalescentes, precavendo-se de mover algum membro que esteja se restabelecendo, antes que se recupere. Retira de si todo o desejo e transfere a repulsa unicamente para as coisas que, entre as que são encargos nossos, são contrárias à natureza. Para tudo, faz uso do impulso amenizado. Se parecer insensato ou ignorante, não se importa. Em suma: guarda-se atentamente como <se fosse> um inimigo traiçoeiro. (Manual de Epicteto, 48. Tradução de Dinucci e Julien)

O inimigo traiçoeiro em nós, ao qual Epicteto se refere, é o nosso amor próprio, o nosso orgulho, que nos impede de ver quem verdadeiramente somos. Aqui, a profissão socrática de ignorância mais uma vez é de extrema utilidade. É preciso que reconheçamos que nada sabemos de fato, e que todo aquele que nos elogia, mesmo com a melhor das intenções, está iludido quanto ao que verdadeiramente somos. Isso nos permitirá investigar com mais objetividade quem nos elogia, para tentar descobrir suas verdadeiras intenções. Também demonstrações de afeto muitas vezes são encenações e prenúncios de traições. Lembrem-se que Cristo foi traído com um beijo.  

Uma regra de prudência para tentar detectar falsas amigos aduladores é a quantidade e a intensidade de elogios. Quem te elogia sempre e nunca te critica, quem te louva além das medidas como se você fosse um gênio (lembre-se que os gênios não se consideram gênios) tem alta probabilidade de ser um adulador.  

Precisamos ter em mente que um adulador é um falso amigo. Não possui o afeto que finge possuir em relação a você. E ele demonstrará indiretamente essa falta de afeto de várias maneiras. Coisas como não te apresentar aos amigos dele, jamais te chamar para sair ou ir à sua casa, te excluir da vida social dele em geral, revelam a verdadeira ausência de sentimentos que acalenta o falso amigo. 

Outro ponto importante é que o falso amigo é, por regra, amigo de seus inimigos. Como ele vive em função de vantagens pessoais, e como uma inimizade tem evidentes custos, ele não terá pudores de ser tão “amigo” seu quanto de seus piores inimigos. Na sua frente, porém, falará mal deles, e também falará mal de você quando estiver na frente deles. Epicteto enfatiza o caráter necessariamente solidário do verdadeiro amigo:

Assim, quando precisares compartilhar um perigo com o amigo ou com a pátria, não consultes o oráculo se deves compartilhar o perigo. Pois se o adivinho anunciar maus presságios, é evidente que isso significa ou a morte, ou a perda de alguma parte do corpo, ou o exílio. Mas a razão te impele, mesmo nessas situações, a ficar ao lado do amigo ou da pátria e expor-te ao perigo. Portanto, dá atenção ao maior dos adivinhos, Apolo Pítico, que expulsou do templo o homem que não socorreu o amigo que estava sendo assassinado (Manual de Epicteto, 39. Tradução de Dinucci e Julien)[1]  

Epicteto refere-se aí ao fato óbvio que o sentimento de afeto que funda a amizade envolve apropriação (sobre o que falei aqui), em razão do que consideramos o outro como parte de nós mesmos e nos solidarizamos com seu sofrimento e muitas vezes sentimos o sofrimento do amigo como nosso.  

O falso amigo, porém, não nutre tais sentimentos por nós, mas nos manipula para que possamos conferir a ele alguma vantagem material ou social. Assim, não faz sentido para ele não ser amigo de nosso pior inimigo.

Entretanto, a solidariedade fala mais alto no caso da verdadeira amizade, e o verdadeiro amigo ficará ao nosso lado para nos defender, e não ficará alheio (ou neutro) em meio à situação. 

O falso amigo, por sua vez, muitas vezes, ao ser indagado sobre isso, finge não entender a situação ou nos diz que não quer se envolver ou inventa qualquer desculpa para justificar sua inação. 

Os constrangedores

Temos, como dissemos acima, por outro lado, os falsos amigos que  nos constrangem,  os dominadores que, para nos controlar, usam a estratégia da diminuição. Trata-se, efetivamente, de assédio moral (sobre o que falamos aqui). 

O assediador pratica, sob o disfarce da “amizade”, cujo nome ele constantemente evoca, o caminho da violência moral (pequenos insultos, gozações, diminuições diante de outras pessoas, às vezes quase imperceptíveis, mas constantes) visando nos dominar e controlar.

Para detectar esse tipo de falso amigo é preciso registrar essas ocorrências, não fechar os ouvidos, não pensar que é apenas “brincadeirinha”. Essas pessoas objetivam nos atingir em nosso amor próprio e nos isolar dos demais, para que pensemos, por nossa suposta falta de valor, que precisamos delas para nos guiar e para preencher o vazio que advém da solidão que sentimos quando perdemos nosso amor próprio.

Afastar-se de pessoas assim não é fácil, pois costumam fazer uso de violência quando veem seu ‘escravo’ se libertando. É preciso então, como nos casos de assédio em geral, não ficar isolado, mas buscar pessoas (amigos verdadeiros) para nos ajudar a sair dessa situação. 

Neste artigo detalho as estratégias para superar essas relações, que, em terminologia atual, nada são senão casos de assédio moral.

Falácia do custo irrecuperável

Tanto o adulador quanto o manipulador se escondem sob a capa da amizade, evocando constantemente o seu nome para nos fazer agir como amigos, enquanto eles seguem em seus planos. 

Entretanto, embora nos sintamos muitas vezes mal com essas pessoas, pressentindo que as amizades são falsas, continuamos nessas relações assim mesmo, como se não tivéssemos saída. 

Creio que isso se deva a duas razões principais. 

Primeiro, pensamos no tempo investido na relação. Trata-se do que Rolf Dobelli chama de falácia do custo irrecuperável.[2] Às vezes investimos tanto em algo que pensamos que sairemos perdendo se abandonarmos esse algo e começarmos no zero. Para não sermos vítimas desse sofisma, precisamos refletir que o que se perdeu não será recuperado, e que o fim da relação significa, na verdade, a realização (aceitação) dessas perdas. Assim, ainda que não possamos recuperar o que foi perdido, ao encerrarmos a relação, fazemos cessar as perdas e, ao mesmo tempo, nos abrimos para outras possibilidades.

Segundo, tememos parecer aos outros ou a nós mesmos muito estúpidos por não termos sabido diferenciar uma verdadeira amizade de uma falsa, tememos reconhecer o abismo de nossa solidão e de nossas carências. O remédio para isso é mais uma vez a profissão de ignorância socrática: é preciso que tomemos ciência do caráter precário de nosso conhecimento; que, em larga medida, estamos e estaremos sempre sós (pois o desejo de união é infinito, mas as possibilidades reais e o tempo são limitados); e que o único caminho que temos para progredirmos na vida é abandonar nossas falsas crenças (que incluem pensar que um falso amigo é um amigo verdadeiro) e seguir em frente, cientes de nosso caráter efêmero e de nossas fragilidades.


[1] Segundo Simplício, Epicteto faz aí referência à história acerca de dois amigos que, estando a caminho de Delfos, foram assaltados. Um dos amigos fugiu, abandonando o outro, que acabou sendo assassinado pelos bandidos. Quando o que fugiu chegou a Delfos e foi consultar o oráculo, foi expulso do templo. Simplício (Comentário ao Manual de Epicteto XXXIX, 86) assim descreve as palavras do oráculo dirigidas ao que abandonara seu amigo: “Tu que, estando presente e próximo ao amigo à beira da morte e, todavia, não o ajudaste, para que vieste aqui? Homem impuro, profano, sai deste templo purificado!”

[2] Rolf Dobelli, A arte de pensar corretamente. Trad. Karina Janini. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. Quanto a isso, Dobelli nos diz: “Durante anos um amigo se queixou de um relacionamento problemático. Sua mulher o traiu várias vezes. Sempre que ele a pegava em flagrante, ela voltava arrependida, implorando perdão. Embora já não fizesse sentido manter um relacionamento com essa mulher, ele sempre acabava perdoando. Quando conversei com ele a respeito, ele me explicou o porquê: “Depositei tanta energia emocional nessa relação que seria errado deixá-la agora.” Um caso clássico de falácia de custo irrecuperável”.

Esta é a primeira parte do artigo Os estoicos e a questão da amizade. Clique aqui para ler a segunda.

*Parte desse artigo foi escrita por Aldo Dinucci, por isso a primeira pessoa é utilizada. As contribuições de João Leite se destacam na conclusão.

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