O que um naufrágio retrata sobre os últimos anos do tráfico de escravos

Daniela Marinho
Imagem: Canva

É unânime a assertiva de que a escravidão é uma mancha – profunda e incontornável – na história da humanidade. Desse modo, ainda em pleno 2022 é possível descobrir de que forma esse processo atroz se desdobrou. Um naufrágio espanhol recém descoberto trouxe à tona alguns fatos acerca dos últimos anos do tráfico de escravos.

O imponente Guerrero, um navio negreiro espanhol cujo destino era Cuba, naufragou em Florida Keys (arquipélago de ilhas tropicais que se estende do sul do estado da Flórida até o Golfo do México) no início do século XIX (19) depois de ser perseguido por uma escuna antiescravagista inglesa, a Nimble, em 1827.

Navegando ilegalmente, o Guerrero bem representava o não cumprimento da lei: no momento em que o mundo via nascer leis antiescravistas, Cuba ainda adquiria mão de obra africana. A Espanha, interessada nos lucros, ignorava decretos e tratados que impediam – pelo menos na teoria – o comércio transatlântico de escravos.

A Inglaterra, no entanto, passou de aproveitadora para vigilante, despachando um grupamento da Marinha Real para patrulhar em alto mar; sua missão era acabar com o tráfico e libertar as pessoas acorrentadas e maltratadas “por um tráfico tão desumano”. Embora os tratados, inclusive feitos entre a Espanha e a Grã-Bretanha em 1835 e 1845 existissem, os escravos continuavam indo e vindo em enormes quantidades.

Até a metade do século 19, meio milhão de africanos foram escravizados em Cuba. Os Estados Unidos se tornaram o parceiro comercial mais influente da ilha, responsável por 34% das importações e 44% das exportações. Quanto mais açúcar Cuba produzia, mais sua classe alta demandava luxos internacionais. Cada africano recém traficado produzia uma tonelada a mais de açúcar, o que alimentava e engordava o sonho americano. Apenas em 1886 foi que o comércio ilegal de africanos em Cuba encerrou-se oficialmente.

Perseguição mortal anuncia começo do fim do tráfico de escravos

Em 17 de dezembro de 1827, a Nimble estava cruzando o Estreito da Flórida quando viu a vela do Guerrero, que estava navegando por Orange Cay nas Bahamas, descendo pelo mesmo lugar sob o comando do capitão José Gomez, com a esperança de evitar os britânicos que patrulhavam a costa norte de Cuba. Este foi o primeiro momento a anunciar o fim do grande navio negreiro. Sua empreitada quase foi perfeita, pois o navio fez todo o caminho da Nigéria às Bahamas.

Quando estava virando para o sul em direção a Havana, o Guerrero foi avistado pela Nimble. O Nimble estava armado com 8 canhões, mas os 14 canhões do Guerrero, mais potentes, tinham o poder de explodir o navio da patrulha inglesa por completo. A seis milhas de Key Largo, Flórida, o Guerrero fingiu se render e acelerou com força total. A perseguição então foi tomando forma; a brisa, no entanto, foi jogando os navios em direção às Florida Keys, onde o Guerrero colidiu com um recife de coral muito baixo e afiado. Os mastros caíram e o caso se rasgou. Dos 561 prisioneiros, 41 morreram afogados.

Ao passo em que o Guerrero afundava lentamente no Oceano Atlântico, os gritos ecoavam por três quilômetros na imensidão do oceano; os gritos eram “indescritíveis”, segundo informações de um jornal local.

Descoberta

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O mergulhador Kramer Wimberley usa um detector de metais para procurar destroços do Guerrero e Nimble em Florida Keys. Imagem: Produtores Associados Ltda.

Em 2019, a equipe liderada por Corey Malcom, começou a desbravar o local. Porém, ele sabia que a maioria dos navios acabava despedaçada por furacões. Dessa forma, era preciso seguir as pistas dadas pelos detritos forenses.

Após um trabalho árduo, diversos artefatos foram descobertos, como algemas de pernas humanas. Segundo Malcom, “Há coisas em todos os lugares […] Isso se encaixa no nosso cenário do Nimble jogando muitas balas de canhão de ferro. Quando você combina todas essas balas de canhão de ferro com o resto das evidências, elas se encaixam perfeitamente no registro histórico.”

Guerrero era agora um amontoado de destruição, destroçado por centenas de furacões; sua estrutura havia sido espalhada por toda parte. Mas o sentimento da equipe ao concluir se tratar do grande navio, lar impiedoso de memórias afro-americanas quebradas, enfim era de realização. Wimberley, um instrutor de mergulho, resumiu as emoções: “É um tipo de experiência sombria […] É dar voz às pessoas que não têm mais voz, e é disso que se trata toda essa experiência.”

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