O que é a microscopia crio-eletrônica, a técnica vencedora do prêmio Nobel?

Diógenes Henrique
A técnica permitiu que cientistas estudassem moléculas biológicas ou de vírus, como foi o caso do vírus Zika, em detalhes sem precedentes. Imagem: NobelPrize.org

Os laureados de química de 2017 foram reconhecidos pelo desenvolvimento da microscopia crio-eletrônica. Mas, o que é, por que ela é empolgante e a quais avanços ela nos levará?

Um trio de cientistas compartilha o Prêmio Nobel de Química deste ano: Jacques Dubochet, Joachim Frank e Richard Henderson.

A escolha se deve ao trabalho deles com uma técnica conhecida como microscopia crio-eletrônica, abreviada como crio-ME, que permitiu que os cientistas estudassem moléculas biológicas com uma nitidez sem precedentes, bem como a estrutura do vírus zika e as proteínas que se acredita estarem envolvidas na doença de Alzheimer.

Ser capaz de capturar imagens dessas moléculas biológicas em uma resolução atômica não só ajuda os cientistas a entender suas estruturas, mas abre a possibilidade de explorar processos biológicos, ao se comparar imagens tiradas em diferentes momentos.

Os especialistas acrescentam que a informação obtida através da crio-ME provou ser valiosa também para ajudar cientistas a desenvolver medicamentos. “Tem sido usada na visualização da forma como os anticorpos podem funcionar ao impedir que os vírus sejam perigosos, levando a novas ideias para medicamentos, para ficar em apenas um exemplo”, disse ao jornal The Guardian Daniel Davis, professor de imunologia na Universidade de Manchester.

Por que precisamos de microscopia crio-eletrônica ou crio-ME?

Os microscópios permitem que os cientistas olhem estruturas que não podem ser vistas a olho nu — mas quando essas estruturas são muito pequenas, não é mais possível usar raios de luz para fazer o trabalho porque seus comprimentos de onda não são suficientemente curtos. Em vez disso, feixes de elétrons podem ser usados, como em uma técnica conhecida como microscopia eletrônica de transmissão (MET), ou os cientistas podem empregar um método conhecido como cristalografia de raios-x, na qual raios-x são espalhados à medida que eles atravessam as amostras, criando padrões que podem ser analisados de modo a revelar a estrutura das moléculas.

O problema é que a cristalografia de raios-x depende de as moléculas biológicas formarem estruturas ordenadas, o que muitas não conseguem fazer. Além disso, a técnica não permite que os pesquisadores avaliem como as moléculas se movem.

“Cristalizar as proteínas é muito difícil e você não pode fazer isso com todas”, disse à agencia AFP Sjors Scheres, do Medical Research Council Laboratory of Molecular Biology em Cambridge, Inglaterra, segundo o portal UOL. Outro problema é que a cristalografia de raios-x exige que os cientistas removam as moléculas do interior de uma célula, alterando assim seu estado natural.

Historicamente, a MET também apresentou dificuldades. O próprio feixe de elétrons “fritou” as moléculas biológicas estudadas. Foi aí que a técnica envolveu o uso de vácuo, que resulta na secagem e no colapso de moléculas biológicas a serem observadas, jogando uma chave inglesa nas engrenagens do processo quando se tratava de sondar a estrutura de moléculas biológicas.

Os laureados com o Nobel de química deste ano resolveram essas incógnitas, o que permite que os cientistas usassem a MET, a microscopia eletrônica, para imagens de moléculas biológicas em uma resolução incrível.

Os vencedores do Prêmio Nobel em química deste ano em química conduziram estudos que permitiram avanços na pesquisa sobre estruturas microscópicas em melhores definições de imagem. Da esquerda para a direita, Jacques Dubochet da Universidade de Lausanne (UNIL), França, Joachim Frank da Universidade Columbia da Cidade de Nova Iorque, Estados Unidos, e Richard Henderson do Laboratório de Biologia Mocelular MRC de Cambridge, Reino Unido, dividiram o prêmio de 9 milhões de coroas suecas, cerca de 1,4 milhão de dólares ou aproximadamente 3,5 milhões de reais, concedido pela Real Academia Sueca de Ciências ao receberem o prêmio Nobel de Química de 2017, anunciado no dia 04 de outubro.
Os vencedores do Prêmio Nobel em química deste ano em química conduziram estudos que permitiram avanços na pesquisa sobre estruturas microscópicas em melhores definições de imagem. Da esquerda para a direita, Jacques Dubochet da Universidade de Lausanne (UNIL), França, Joachim Frank da Universidade Columbia da Cidade de Nova Iorque, Estados Unidos, e Richard Henderson do Laboratório de Biologia Mocelular MRC de Cambridge, Reino Unido, dividiram o prêmio de 9 milhões de coroas suecas, cerca de 1,4 milhão de dólares ou aproximadamente 3,5 milhões de reais, concedido pela Real Academia Sueca de Ciências ao receberem o prêmio Nobel de Química de 2017, anunciado no dia 04 de outubro.

O que eles fizeram?

Henderson e sua equipe do Laboratório de Biologia Molecular (MRC) de Cambridge, Reino Unido, usando uma solução de glicose para evitar que as moléculas se dessecassem, combinaram um feixe de elétrons mais fraco com imagens tiradas de muitos ângulos e com abordagens matemáticas para construir uma imagem 3D de uma proteína ordenadamente organizada dentro de uma membrana biológica. Foi um momento decisivo. Henderson mais tarde conseguiu revelar sua estrutura 3D em resolução atômica — a primeira para uma proteína.

Enquanto isso, Frank, na Universidade Columbia na Cidade de Nova Iorque, Estados Unidos desenvolveu técnicas de processamento de imagem engenhosas para coletar dados MET e criar imagens de moléculas biológicas, que estavam imersas em solução, para as quais elas apontam os feixes em diferentes direções.

Dubochet, da Universidade de Lausanne (UNIL), França, apresentou uma abordagem sofisticada para evitar que as moléculas secassem. A técnica de Henderson não funcionou para moléculas biológicas solúveis em água, enquanto o congelamento de amostras resultou na formação de cristais de gelo que causaram danos e tornaram as imagens resultantes impossíveis de serem interpretadas.

A solução de Dubochet para o problema foi rapidamente arrefecer as amostras a uma velocidade tal que as moléculas de água não tinham tempo de adotar uma estrutura regular. Em vez disso, eles apontavam para todos os lados, resultando em um copo dentro do qual as moléculas biológicas foram “congeladas no tempo” e em sua forma natural.

Ou seja, com a técnica os cientistas resfriam cuidadosamente amostras preparadas de tecido ou células a temperaturas de cerca de 200 graus Celsius negativos, às vezes menos.  Um dos objetivos das amostras congeladas é interromper a atividade das moléculas dentro delas para que os pesquisadores possam tirar instantâneos menos borrados. A seguir, os cientistas então disparam os feixes de elétrons na amostra congelada para “revelar” seus detalhes em nível atômico.

A imagem mostra como os pesquisadores têm ilustrado as estruturas de diferentes complexos de proteínas. Em(a) o complexo de proteínas que regula o ritmo circadiano, (b) sensor que mede alterações na pressão do ouvido e nos permite ouvir e (c) o vírus zika. Foto: The Royal Swedish Academy of Sciences
A imagem mostra como os pesquisadores têm ilustrado as estruturas de diferentes complexos de proteínas. Em (a) o complexo de proteínas que regula o ritmo circadiano, (b) a proteína que funciona com um sensor que mede alterações na pressão do ouvido e nos permite ouvir e (c) o vírus zika. Foto: The Royal Swedish Academy of Sciences

O que vem a seguir?

O trabalho do trio e os esforços subsequentes para aperfeiçoar essas abordagens já levaram a desenvolvimentos surpreendentes. “A técnica de crio-ME realmente abriu o mundo molecular da célula para direcionar a observação”, disse ao jornal The Guardian Andrea Sella, professora de química inorgânica do University College de Londres.

Entre os processos que a nova técnica tornou mais claro, está o mecanismo pelo qual o DNA é copiado para a molécula de RNA de fita simples.

Mas o futuro também é empolgante, com cientistas usando a técnica para investigar a estrutura de moléculas alvo em drogas, bem como componentes dentro de células envolvidas na detecção de dor, temperatura e pressão. Novas melhorias na resolução também estão em andamento.

“O microscópio crio-eletrônico é uma dessas técnicas tão básicas e importantes que seu uso abrange toda a biologia — incluindo a compreensão do corpo humano e de doenças humanas e na concepção de novos medicamentos”, disse Davis.

Ao comentar um estudo de 2015 dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) que usou a cryo-EM para ver, em detalhes quase atômicos, a arquitetura de uma enzima metabólica ligada a uma droga que bloqueia sua atividade, na época, o diretor do NIH, Francis Collins, disse: “Isso representa uma nova era na imagem de proteínas em seres humanos com imensas implicações para o desenvolvimento de drogas”. E ele estava certo. A microscopia eletrônica tem aplicações em ciências da vida, ciências dos materiais e semicondutores. Contudo, com a melhores capacidades de imagens da microscopia eletrônica, uma nova era para diversas áreas do desenvolvimento científico, em especial para áreas ligadas à industria farmacêutica, ciências biológicas e medicina, está começando.

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