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Cultura

Entrevista com Donato Ferrara, criador do blog De Vita Stoica

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É com grande satisfação que tive a oportunidade de elaborar algumas perguntas para Donato Ferrara, um admirador do estoicismo que resolveu criar um blog para falar sobre o assunto. Cuidadoso e bem articulado, Donato consegue abordar a filosofia estoica de uma maneira simples, mas nunca superficial, explorando muito bem as questões atemporais dessa doutrina milenar. Em seu blog encontramos traduções, entrevistas e textos de sua própria autoria, todos com um conteúdo bem pensado e selecionado que evidenciam a dedicação e o esmero do autor. Donato criou também um canal no Youtube de grande audiência para a difusão do estoicismo, no qual, entre outras coisas, comentou, por capítulos, o pensamento de Marco Aurélio Antonino.

Fiquemos então com a entrevista.

1 – Donato, antes de falar sobre o blog, você poderia nos contar sobre você e a sua relação com o estoicismo?

Sou formado em Letras. Como tal, mais propenso às discussões que tratam de estética do que às que tratam, por assim dizer, de ética. Ainda assim, sempre frequentei alguns filósofos e pensadores. Não posso dizer que tenha realmente entendido os textos filosóficos que me caíram nas mãos antes dos 30 anos: eu me prendia às sacadas espirituosas e aos arroubos retóricos que havia ali, mas não sabia muito bem dizer por que aquelas obras eram importantes. E isso era especialmente verdadeiro com relação aos antigos.

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Amadurecendo, passei a exigir mais densidade de minhas leituras e mais coerência das interpretações que fazia. E assim fui levado a entender, por exemplo, que o gesto de Sócrates que lhe determinou a morte tinha uma relação estreita com o próprio método que ele havia inventado e posto em prática: morrer como ele morreu não foi apenas uma consequência social criada por um revanchismo contra certos indivíduos incômodos na Atenas derrotada na Guerra do Peloponeso, mas uma necessidade que o próprio Sócrates reconheceu em si, uma exigência que a vida filosófica lhe impôs naquelas circunstâncias. “Não mudarei um centímetro, atenienses”, “não fugirei da raia, Críton” — foi mais ou menos o que ele disse, com bonomia e firmeza. Posteriormente, encontrei atitudes semelhantes em muitos filósofos do Período Helenístico e de Roma, os quais me esclareceram que a filosofia tinha uma dimensão prática fundamental: o filósofo (i. e., o amante da sabedoria) não se portava como os demais porque era capaz de empregar o pensamento para examinar a vida e tirar o melhor proveito possível dela. Muitos gregos e romanos pensavam de maneira muito clara — tão clara que penamos para compreendê-los hoje —, e isso tinha impacto em seu modo de vida. 

O encontro com a obra de Pierre Hadot também teve importância para mim, fornecendo-me algumas chaves a mais para a decifração dos antigos. Nos escritos do francês, a distinção entre discurso filosófico e filosofia em si nos dá a medida exata da distância que separa a filosofia ensinada nos ambientes universitários atuais — exceções à parte — daquela dos gregos e romanos, visto que se nota nos modernos uma tendência à absolutização do discurso, como se o mero manejo de um arsenal crítico e conceitual fosse o suficiente para destacar o “sujeito filosofante” do comum dos mortais. Se dermos ouvidos a muitos dos antigos, porém, reconheceremos que ou as palavras têm peso e valor, comunicando convicções interiores que tentam traduzir-se em ações, ou são como bolhas de sabão. Também fundamental em Hadot é o seu resgate da noção de exercício espiritual junto aos antigos, particularmente iluminadora em se tratando dos estoicos. A “vida examinada” é posta em funcionamento por meio de certos expedientes de autovigilância, ora analítico-científicos, ora psicológicos, ora mnemônicos, ora mesmo físicos, que forjam um recesso de vida contemplativa no próprio seio da vida ativa. Constatar isso na filosofia estoica, além da centralidade da excelência/virtude (aret), tornou-a particularmente atraente para mim. 

O professor William B. Irvine convenceu-me, além do mais, de que é possível aplicar certos aspectos do estoicismo sem comprar, anacronicamente, o “pacote todo”. O que importa é que desde sempre filosofar é, como bem o formulou Montaigne, aprender a morrer, não a seduzir incautos. Ou é isso, ou a filosofia não passa de uma curiosidade intelectual como outra qualquer. Para mim, ao menos é assim.  

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2- Como surgiu a ideia de criar um blog sobre estoicismo?

Na verdade foi algo bem pouco original. Eu lia alguns blogs em inglês, como o “Stoicism Today” (atual “Modern Stoicism”, mantido por Donald Robertson e Greg Sadler) e o “How to Be a Stoic” (de Massimo Pigliucci), e resolvi fazer algo parecido em minha própria língua. Hesitei bastante porque não me considero um estoico, apenas alguém interessado em possíveis aplicações dessa filosofia na contemporaneidade, e também por não saber se o conhecimento que tinha sobre o assunto renderia dezenas de posts diferentes. Até agora, tem dado certo: escrevo devagar, dedicando-me uma ou duas horas noturnas por dia a meus textos, mas sempre me sai alguma coisa que me parece razoável. Adquiri um domínio na web (por ser mais difícil abandonar uma página que me custou algum dinheiro) e também faço traduções, a fim de dar aos leitores de língua portuguesa uma noção do que vem sendo discutido lá fora. 

O que escrevo ou traduzo não costuma suscitar muita discussão em forma de comentários, mas às vezes recebo uma ou outra mensagem de alguém dizendo que foi convencido a ler determinado autor ou a pôr certa ideia em prática por causa de um post do “De vita stoica”. É gratificante, mas ao mesmo tempo me põe uma série de responsabilidades. Deixo claro que não sou o porta-voz de movimento nenhum e que meus textos não exprimem o que é “o” estoicismo, mas tão-somente uma interpretação muito particular da coisa. Seria muito bom se a filosofia estoica atualizada tomasse também aqui no Brasil o vulto que tem tido no exterior — especialmente porque nossa sociedade está carente de, digamos, valores superiores e de homens e mulheres capazes de vivê-los no cotidiano  —, mas seria detestável se eventualmente tivéssemos “líderes de seita” ou “gurus” pregando aos outros o que não aplicam a si mesmos. Os mais antigos adeptos do Pórtico tinham uma concepção de sabedoria como a de uma meta praticamente inatingível: o sábio autêntico era tão raro quanto a Fênix Etíope, somente surgia a cada 500 anos. Eles não supunham diferença perceptível entre o não instruído e o instruído em filosofia, ambos igualmente tolos (phaûloi). Trata-se, portanto, de uma escola filosófica que se municiou, desde muito cedo, de vacinas contra a vaidade, a hipocrisia, o chauvinismo e a prepotência. Quando um aspirante à sabedoria falha em tais quesitos, falha por sua própria falta de vigilância. Buscando harmonizar-me com isso, gostaria de que aquilo que publico no “De vita stoica” fosse tomado como algo não muito diferente de uma exortação nestes termos: “não acredite em mim, leitor: vá, leia os originais, releia-os, reflita por si mesmo, experimente as coisas que julgar convenientes, ponha-se à prova, discorde de mim se achar que erro — mas esteja imbuído da certeza de que é a vida o que importa, não as palavras com que tentamos corrigi-la ou torná-la melhor”.

3 – Você poderia sugerir um ou dois textos estoicos que lhe agradam? E qual seria o motivo desses textos lhe agradarem?

Não sugerirei um nem dois, mas três — os que me parecem indispensáveis. Falo das Cartas a Lucílio, de Sêneca, das Diatribes, de Epicteto e das Meditações, de Marco Aurélio. Valem a pena não só por serem provavelmente as obras mais alentadas do corpus estoico — e portanto as mais ricas em temas e argumentos —, como também por transportarem o leitor para uma dimensão composta pelo que há de mais cotidiano, concreto e mesmo íntimo na vida desses grandes personagens do estoicismo da época imperial. Sob ângulos distintos em cada caso, vemos esses três filósofos submeterem o material da existência do dia a dia ao escrutínio dos princípios da filosofia do Pórtico, encontrando soluções para os problemas que surgem, mas também expondo perplexidades e confessando fraquezas, pontos cegos. De certa maneira, passamos a fazer parte da vida deles, somos admitidos em um círculo muito próximo e exclusivo. Ninguém sai a mesma pessoa que entrou dessas leituras; a coisa, porém e além do mais, ganha ainda maior interesse a cada releitura. De modo que são livros que devem ser lidos, relidos, treslidos, mantidos à cabeceira, à mão, à memória. É uma infelicidade não podermos contar com bom número de traduções dessas três obras (quando existem!) em nosso idioma, além de vê-las tão pouco e tão pobremente editadas. É um ingrediente não negligenciável de nosso isolamento cultural. Nós, que nos interessamos pelo estoicismo quer no seu aspecto acadêmico, quer no prático, temos muito a fazer quanto à divulgação desta tradição filosófica no Brasil, tão antiga mas tão atual.

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4 – Você poderia citar um trecho de uma obra estoica que lhe agrade?

São muitos os trechos interessantes, esclarecedores, inspiradores. Cito este, que tem muito apelo para mim. Colocando-se contra os que se ocupam de assuntos filosóficos somente para exibir-se, Epicteto traz à memória algo que seu mestre Musônio Rufo costumava dizer (está nas Diatribes, III, 23: 29): “Se vocês ficam folgados o bastante para me aplaudir, é que não digo nada que vale a pena”. É um dito que cristaliza muito do que os estoicos viam como virtuoso.

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