Aristóteles e o relacionamento virtual

Aldo Dinucci

Somos seres do mundo, estamos permanentemente envolvidos por ele. Levantamo-nos pela manhã, tomamos o nosso café, por vezes vamos ao trabalho, olhamos nosso e-mail, por fim, desenvolvemos nossas atividades diárias. A sequência de nossas ações torna-nos tão inseridos no cotidiano que acabamos por ter uma visão subjetiva do mundo a partir de nossa rotina. Se parássemos por algum tempo e tentássemos abstrair o mundo, ou os mundos que existem independentes de nossas experiencias, veríamos um mosaico composto pelas mais variadas formas de o(s) apreender. Ver o mundo através dos olhos da Física, Química, Biologia; colocar as lentes da Matemática, assim como da Antropologia e Sociologia. Quão longe chegaríamos? Quão universais nos tornaríamos? Dizemos isso porque a visão filosófica do mundo é apenas mais uma maneira de abordá-lo. Não temos aqui a pretensão de propor soluções para os relacionamentos característicos de nossa época, mas apenas mostrar como isso pode ser visto a partir da Filosofia, particularmente em Aristóteles. 

Isso posto, nosso objetivo é o de abordar um problema filosófico encontrado dentro das relações virtuais, já que muito nos impressiona a quantidade surpreendente de ‘amigos’ e ‘seguidores’ que estão em conexão conosco. 

Daremos impulso a nossa reflexão como as seguintes questões: será que podemos adquirir e manter amizades virtualmente? Podemos afirmar, realmente, que a quantidade de amigos nas redes sociais é um reflexo fiel da nossa vida fora delas? Como poderemos saber realmente quem são nossos amigos? E mais, se não o são no sentido estrito do termo, ainda assim poderemos chamá-los de amigos? Aristóteles pode ajudar-nos a responder estas questões com sua reflexão sobre a amizade inserida no livro VIII e IX da Ética Nicomaquéia. Mas, antes de apresentar o pensamento aristotélico, vamos entender como funciona a estrutura do relacionamento virtual retrocedendo até a primeira plataforma a ganhar popularidade mundial: tratemos um pouco sobre o ORKUT. 

Criada em 24 de janeiro de 2004, essa rede social tinha a proposta de fundamentalmente ajudar as pessoas a constituir novas amizades, de criar uma ‘rede de amigos’. O nome advém de seu criador, Orkut Büyükkokten, um engenheiro de software nascido em 6 de fevereiro de 1977, na Turquia. Enquanto estava estudando na Universidade de Stanford, ele criou o conceito desta rede social, mais tarde desenvolvendo-a como funcionário da empresa Google

O desenvolvimento da rede teve como base A Teoria dos Seis Graus de Separação (MILGRAM, The Small Word ProblemPsychology Today 2, 60-67: 1967). Originada de um estudo científico feito nos Estados Unidos, a teoria afirma que no mundo é necessário apenas a ligação de seis pessoas para que outras duas também estejam ligadas. Para isso ser comprovado, foram enviadas cartas para pessoas que, após o recebimento, tinham de identificar o remetente. Caso este fosse identificado, quem tinha recebido a carta deveria enviar outra carta ao remetente, caso não, ela deveria mandar para alguém que tivesse a possibilidade de conhecê-lo. E quando a pessoa que foi identificada recebia a carta, ela enviava outra aos responsáveis pela pesquisa. Partindo desse princípio, o Orkut corroborou a teoria conectando milhares de pessoas pelo mundo.

As redes sociais ‘evoluíram’, e outras plataformas foram surgindo. Aumentaram os limites de amigos inscritos. Nomes mais atrativos como Facebook, Instagram, Messenger, Twitter, Snapchat surgiram. Suas capacidades foramaumentando ao ponto de lembrar-nos do Orkut com certo grau de inocência. Mas, apesar dessa ‘evolução’, o princípio básico permanece, e é nele que aplicaremos a teoria da amizade aristotélica.

Aristóteles inicia sua definição afirmando que, antes de abordarmos o tema da amizade, temos de conhecer primeiramente os bens do amor.  Visitamos a Retórica para entendermos melhor: “amar é querer para outrem aquilo que reputamos serem bens, e isto não em nosso interesse, mas no interesse dele” (Aristóteles, Arte Retórica, II). Para uma coisa ser um bem, ela dever ser boa, agradável e útil. Sendo as coisas úteis resultado das coisas boas e prazerosas, aquilo que merece ser amado como fim é o que é bom e agradável. Mas será que as coisas que as pessoas amam são boas em si mesmas ou apenas lhes parecem boas? O filósofo não desenvolve o tema, pois não fará diferença para o ponto em questão. No entanto, ele parte do princípio de que as pessoas amam o que elas julgam ser bom. Isso não poderia justificar um amor que alguém possa sentir por um carro, por exemplo, ou por uma garrafa de vinho? Sim, mas em relação à amizade, isto não seria possível, porque seu princípio fundamental está na reciprocidade dos sentimentos: “é amigo aquele que ama e é amado em retorno. Julgam ser amigas as pessoas que julgam encontrar-se nestas disposições reciprocamente”(Aristóteles, Arte Retórica, II). 

Não é possível existir amizade quando apenas uma das pessoas desejam o bem do outro: “Para que as pessoas sejam amigas deve-se constatar que elas têm boa vontade recíproca e se desejam bem reciprocamente por uma das razões mencionadas” (Ética Nicomaquéia, VIII, 1156a), ou seja, pelo que é bom, útil e agradável. 

Notemos que existe uma coincidência do amor e da amizade no desejar o bem à outra pessoa, mas a diferença está em que o amor é considerado por Aristóteles uma emoção, ou seja, sentimentos que nos afetam e que estão acompanhados de prazer e sofrimento (Aristóteles, Ética Nicomaqueia, II, 1106a), como os desejos, a inveja, a cólera: isto explica porque podemos amar algo inanimado, pois existe a possibilidade de nos sentir irritados quando nosso automóvel enguiça, ou alegres por ter comprado um computador, por exemplo. Já a amizade é uma questão de escolha que pressupõe, como veremos a seguir, certa disposição de caráter. 

Vimos que o amor possui três qualidades. Analogamente também haverá três tipos de amizade, cada uma fundamentada nos mesmos motivos que qualificam o amor. O primeiro tipo de amizade está fundamentado no interesse ou na utilidade, quando os amigos não se amam por si mesmos, isto é, por seu caráter, mas sim por causa do proveito que obtêm um do outro. 

O mesmo podemos dizer da amizade fundamentada no prazer: os amigos por prazer não gostam um do outro pelo caráter, mas porque um é agradável ao outro. O exemplo neste caso é o dos jovens, pois, além de estarem sob forte influência da emoção, vivem em função do prazer, isto é, do que é agradável para eles, e, na medida em que o tempo passa, os prazeres vão tornando-se outros, fazendo com que eles mudem constantemente de amigos. Essas relações são acidentais porque as pessoas estão se usando como meio e, na medida em que deixam de ser úteis ou agradáveis, deixam de se amar, e a amizade se desfaz: “portanto, desaparecido o motivo da amizade, esta se desfaz, uma vez que ela existe somente como um meio para chegar a um fim” (Aristóteles, Ética Nicomaqueia, VIII, 1156a). 

A amizade considerada verdadeira para Aristóteles é aquela que está baseada naquilo que é bom, quando duas pessoas boas desejam bem uma à outra não por causa da utilidade ou do prazer que podem proporcionar-se, mas porque a outra pessoa é boa, ou seja, porque possui excelência moral. Apenas neste caso podemos chamá-las de amigas em pleno sentido: “então as pessoas que querem bem aos seus amigos por causa deles são amigas no sentido mais amplo, pois querem bem por causa da própria natureza dos amigos e não por acidente; logo, sua amizade durará enquanto estas pessoas forem boas, e ser bom é uma coisa duradoura” (Aristóteles, Ética Nicomaqueia, VIII, 1156b).

 Em relação à durabilidade, a amizade entre pessoas boas é a mais perfeita, mas tal perfeição não se ampara somente na durabilidade. A amizade segundo a bondade é a mais perfeita, em relação às outras duas, porque na bondade estão incluídos necessariamente tanto o prazer quanto à utilidade, no entanto, não sendo o mesmo nas outras duas. Esta é a razão pela qual podemos chamar as pessoas de uma relação baseada apenas na utilidade e no prazer de amigos, pois como ser útil e agradável pertence, de forma acidental, à amizade segundo a bondade, eles são amigos por acidente, embora não sejam amigos em sentido estrito. A verdadeira amizade, assim como também o verdadeiro amor, pode existir apenas entre pessoas boas que querem bem uma à outra, ou seja, é indispensável que haja a reciprocidade de sentimentos e de boas ações. Contudo, amizades como estas são muito difíceis de existir, pois, segundo Aristóteles, a quantidade de pessoas boas é pequena (Aristóteles, Ética Nicomaqueia,  VIII, 1156b). 

Para haver um relacionamento amigável e sincero, é necessário adquirir confiança, e para isso é preciso que haja tempo e intimidade: “as pessoas também não poderão manter amizade umas com as outras ou ser realmente amigas enquanto cada uma das partes não houver demonstrado à outra que é digna de amizade e não lhe tiver conquistado a confiança.” (Aristóteles, Ética Nicomaqueia, VIII, 1156b). 

 Outro aspecto de importante relevância para haver uma amizade verdadeira é a atividade, e isto também serve para as amizades segundo o prazer e segundo a utilidade. Segundo Aristóteles, para existir reciprocidade nos sentimentos e nas boas ações é necessário que as pessoas convivam umas com as outras. Não é possível exercer a atividade própria dos amigos se ele não está presente. A amizade, neste caso, não termina, mas a atividade sim. Além disso, se as pessoas estiverem ausentes por um longo período, a amizade pode ser esquecida: “quando duas pessoas se apreciam mutuamente, mas não vivem juntas, parecem apenas bem dispostas uma para com a outra e não realmente amigas. Efetivamente, nada é mais característico dos amigos que o desejo de viver juntos” (Aristóteles, Ética Nicomaqueia, VIII, 1156b). 

Aristóteles, portanto, afirma existirem três tipos de amizade: a que está fundamentada no prazer, na utilidade e na bondade. Para que tenhamos qualquer uma dessas amizades é necessário haver reciprocidade nos sentimentos e nas ações. Ora, podemos dizer que desejamos o bem de uma pessoa que está do outro lado do mundo através de mensagens de carinho, e essa pessoa pode fazer o mesmo por nós. No entanto, apesar de termos reciprocidade nos sentimentos, como podemos ter reciprocidade nas ações? Esta reciprocidade se dará através dos constantes recados? O máximo que conseguiríamos é não esquecer da amizade (é claro que Aristóteles não supôs que haveria formas de se comunicar a grande distância e em tempo real, comunicação esta que realmente não deixa que esqueçamos de nossos amigos), mas no concernente à atividade, como, por exemplo, ajudar ao nosso amigo estando junto a ele nos momentos difíceis, se torna impossível em razão da distância. Assim, como podemos ter diversos amigos, se não estivermos jamais com eles fisicamente? E mesmo estando, como dar conta de tantos? E como poderíamos amar 500, 600 ou 1.000 pessoas ao mesmo tempo? Além disso, se tivermos uma grande quantidade de amigos, como poderemos saber se realmente o são no sentido estrito do termo? Ora, seguindo a teoria aristotélica da amizade, deveríamos selecionar nossos amigos nas redes sociais da seguinte maneira: amigos úteis, amigos prazerosos e amigos verdadeiros. O problema se dá porque devemos ter essas classificações antes de criarmos a nossa conta, pois somente convivendo com a pessoa é que poderemos classificá-la em uma das características que fundamentam uma amizade. Dessa forma, as redes sociais não possuem ferramentas para classificarmos verdadeiramente as amizades. Consequentemente, não temos como fazer amigos, pois, mesmo em amizades que estejam baseadas no prazer e na utilidade, casos em que o número de amigos pode ser elevado, é preciso que a pessoa seja útil e agradável. E como ser assim virtualmente? Emocionando a outra com os recados ou compartilhando uma grande quantidade de fotos e vídeos? E mais, não saberemos se o amigo está realmente dentro de uma dessas classificações, pois não conseguiremos vê-lo em sua própria vida, ou seja, não estamos vendo-o praticar ações reais. O que for postado por ele, então, poderá ser tomado como critério de verdade? Se ele nos ama e deseja estar junto de nós, o relacionamento virtual torna-se uma ferramenta limitada, pois “(…) os atos são os sinais das disposições da alma.” (Aristóteles, Retórica, I, IV).

Não é nossa finalidade desprezar, ou mesmo minimizar os relacionamentos virtuais. Eles existem, são populares, por vezes úteis, e suas funcionalidades já excederam há tempos sua função originária. Nossa crítica funda-se principalmente sobre o fato de que a maioria das pessoas está trocando a relação de amizade presencial pela relação virtual, o que produz um distanciamento progressivo entre as pessoas juntamente com a ilusão de que não estão sós, pois estes relacionamentos virtuais são erroneamente vistos como relacionamentos reais. Não causará espanto que, em um futuro próximo, as pessoas se encontrem e fiquem em silêncio, ou apenas troquem umas poucas palavras, pois não terão mais habilidade para se expressar na ausência de um dispositivo eletrônico. Segundo Aristóteles, a virtude deve ser exercitada para que pratiquemos ações de acordo a razão, pois só assim seremos felizes. Como afirma Atoine Hourdakis (Aristóteles e a Educação, Loyola: 2001), a felicidade aristotélica é uma atividade para qual tende a virtude e, sendo a amizade um tipo de virtude, apenas através de ações é que podemos adquirir amigos verdadeiros e mantê-los. E quando falamos de ações, queremos dizer as reais. 

Quando for chamar alguém de amigo, pense bem no que lhe digo pra não ter que se arrepender. Veja se é gente como a gente, se sente o que a gente sente, se há jeito de se entender. Sei que é muito fácil abrir os braços, recebendo um novo abraço, mais um amigo comum. Toda hora se repete a mesma cena, porém em cada centena, veja lá se sobra um.

José Domingos, Samba do Amigo

Escrito por Joelson Nascimento, Professor do Instituto Federal de Sergipe / Doutorando UFBA.

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