Greta Thunberg me chamou a atenção primeiramente pelo fato de ser uma criança de 16 anos sendo insultada e verbalmente agredida por homens poderosos. De acordo com a educação que me foi dada, é absolutamente inconcebível ser rude como uma jovem, uma criança, um idoso, seja pelo que for, em razão do que de imediato me solidarizei com ela.
Comprei em seguida o livrinho que ela publicou pela Penguin books, cujo título me agradou: ‘No one is too small to make a difference’, em tradução livre ‘Ninguém é tão pequeno para não fazer diferença’.
Lendo a obra, que consiste de discursos que a menina fez em diversos lugares em prol do meio ambiente, me impressionaram várias passagens e atitudes de Greta que penso estarem em perfeita consonância com o pensamento estoico em geral e com Epicteto em particular.
Neste pequeno texto, tento dar conta de alguns desses aspectos, começando por uma breve exposição de princípios estoicos e epictetianos, seguida de algumas passagens do livro de Greta que penso se harmonizarem com o que chamarei de ação comunitária epictetiana.
Cícero, em sua visão panorâmica da filosofia estoica, no Dos Fins, diz-nos que, para o Pórtico, do fato de que “ninguém deseje passar a vida em plena solidão, nem mesmo com infinidade e abundância de prazeres, facilmente se depreende que somos nascidos para a comunhão, para a congregação e para a comunidade natural”[2], acrescentando que, para os estoicos, tal comunidade entre os humanos tem sua origem na afeição, criada pela natureza, dos pais pelos filhos.[3] Essa comunidade naturalmente estabelecida, por sua vez, faz com que os humanos ajam não só egoisticamente, mas também comunitariamente, do que segue que o ser humano é naturalmente apto para o intercurso social, para a associação e para a civilidade.[4]
No estoicismo de Epicteto, o ser humano é concebido a partir de duas diferentes perspectivas, um duplo parentesco:
[…] Dois elementos foram misturados em nossa gênese: o corpo, em comum com os animais, e a razão e a inteligência, em comum com os Deuses. Alguns inclinam-se para o primeiro parentesco, que é desafortunado e mortal. Alguns poucos, para o divino e bem-aventurado. Já que é necessário que todo e qualquer homem use cada coisa segundo o que supõe sobre ela, <é necessário que> aqueles poucos que pensam ter nascido tanto para a confiabilidade e para a dignidade […] nada sórdido ou abjeto suponham sobre si mesmos. […] Em razão desse parentesco, <alguns> homens, ao se inclinarem <para a carne>, tornam-se semelhantes aos lobos, desleais, traiçoeiros e nocivos. Outros, <tornam-se> como os leões: agrestes, bestiais e selvagens. Mas muitos de nós <tornam-se> raposas e, assim, o que há de não-afortunado entre os animais. (8) Pois que outra coisa é um homem malévolo e ofensivo senão uma raposa ou algum outro <animal> mais não-afortunado e abjeto? (Diatribes1.3.3-5, 7-8 [5])
Para Epicteto, o ser humano que se inclina para o seu lado animal perde sua dimensão moral, não conseguindo se apropriar do modo ético da realidade que o cerca. Em outras palavras, ao não desenvolver seu caráter racional e moral, reduz-se a um animal irracional que simplesmente busca a satisfação de seus impulsos primários, desejos egoístas e apetites sensuais. Se, por um lado, nada há de errado quanto ao fato de um animal irracional agir assim, por outro, o ser humano, ao limitar-se a esse estágio, deixa de realizar a sua própria natureza. Epicteto afirma que o ato de se inclinar para o parentesco da carne torna o ser humano desleal, traiçoeiro e, portanto, antissocial, ao contrário do ser humano que se inclina ao parentesco divino, que se torna confiável e digno e, portanto, sociável.
Tal duplo parentesco pode ser lido como uma metáfora da condição humana e da possibilidade de que os impulsos que dela emanam conflitem entre si. Ao dizer que o humano deve inclinar-se para sua parte divina (racional e moral), Epicteto quer nos dizer que devemos harmonizar nossos impulsos à razão e às necessidades da vida em comunidade.
Além disso, o ser humano que se inclina para a natureza racional abre para si a possibilidade de tornar-se cosmopolita, cidadão do Cosmos, como Epicteto enfatiza em Diatribes 1.9.5:
(1) Se são verdadeiros os ditos dos filósofos sobre o parentesco dos Deuses e dos homens, que outra coisa resta aos homens que <repetir> o dito de Sócrates, que, quando se lhe perguntava de que país era, jamais se dizia ateniense ou coríntio, mas cidadão do Cosmos. (2) Por que dizes tu mesmo ser ateniense e não unicamente declaras em que canto do mundo o teu pequeno corpo foi lançado ao nascer? […] (4) Portanto, por que não chama a si mesmo de cidadão do Cosmos quem entendeu a administração do Cosmos e aprendeu que “O maior, mais importante e mais universal sistema de todos <é o composto> pelos homens e por Deus, do qual foram lançadas as sementes que geraram não somente meu pai e meu avô, mas todas as coisas que surgiram e cresceram sobre a terra, principalmente os seres racionais, (5) porque somente estes por natureza formam uma comunidade com Deus, entrelaçados pela razão em uma vida em comum” [6]?
Assim, ao inclinar-se para o parentesco divino e para a racionalidade, e ao obter, por esse meio, a ciência do grande sistema cósmico do qual faz parte, o ser humano passa a ter também uma visão comunitária da realidade, encontrando seu lugar no Cosmos e buscando em suas ações tanto o melhor para si mesmo quanto para a comunidade em que vive e, logo, para a humanidade como um todo. Dessa forma, para Epicteto, a ação apropriada não é altruísta, nem egoísta, mas visa simultaneamente o bem do indivíduo e o da comunidade humana:
Pois desse modo é a natureza do animal: ele faz todas as coisas em razão de si mesmo. Pois também o sol faz todas as coisas em razão dele mesmo. E, além do mais, o próprio Zeus o faz. Quando ele deseja ser ‘Aquele que traz as chuvas’ e ‘Aquele dá os frutos’, e ‘Pai dos Homens’ e ‘Pai dos Deuses’, vês que não lhe é possível usufruir essas tarefas e denominações se não forem úteis para o benefício comum de todos. Também Zeus concedeu, em geral, ao animal, quando racional, uma natureza tal que não lhe é possível usufruir nenhum desses bens <que lhe são> peculiares se não lhes for acrescentada alguma utilidade para todos. (Diatribes 1.19.11-15)
Como enfatiza Epicteto, no caso do ser humano, os bens que lhe são próprios (i.e. as excelências morais) não podem ser usufruídos de modo antissocial [7], mas seu usufruto acarreta um benefício social, além do pessoal, pelo que a natureza racional no ser humano coincide com a sua natureza social. Em consonância com o que dissemos, em Diatribes 2.10, Epicteto observa que aquele que chega à concepção de si como parte importante do Cosmos nada trata como assunto privado ou separado dos demais, mas age “como o pé ou a mão, que, se tivessem a faculdade da razão e compreendessem a constituição da natureza, nunca exerceriam a escolha senão em referência à totalidade das coisas” [8].
Vemos assim se delinearem os princípios que regem tanto as ações comunitárias (que visam o bem do indivíduo e da comunidade) e as ações ecológicas (que visam o bem do indivíduo e do meio ambiente e consequentemente, mais uma vez, o bem da comunidade). Nesse sentido, educar é basicamente ensinar o indivíduo a ter em vista em suas ações a comunidade ou perceber os reflexos de suas ações na comunidade. Exemplos simples disso: jogar lixo pela janela do carro pode parecer bom do ponto de vista individual (livrar-sem o quanto antes de algo inútil), mas socialmente não o é, pois degradamos o lugar em que vivemos, pelo que a ação apropriada é descartar o lixo no lugar adequado. Ouvir música bem alto pode parecer bom no sentido do prazer que o indivíduo experimenta ao ouvir sua música preferida, mas não o é no sentido comunitário, pois perturbará a quem não gostar da música ou do barulho, pelo que a ação correta é ouvir em baixo volume ou com fones. Epicteto tem plena ciência dessa urgência de fazer convergirem o interesse pessoal e o comunitário:
Assim como “É dia” e “É noite” possuem pleno valor quando em uma proposição disjuntiva, mas não em uma conjuntiva, assim também tomar a maior parte <da comida> tem valor para o corpo, mas não o valor comunitário que é preciso observar em um banquete. Quando então comeres com alguém, lembra de não veres somente o valor para o corpo dos pratos postos à tua frente, mas que também é preciso que guardes o respeito para com o anfitrião. (Epicteto, Manual 36)
A partir disso, podemos formular, como regra para cada ação nossa, que ela será boa se beneficiar simultaneamente o agente e a sociedade na qual se insere. Em outros termos, é preciso que façamos coincidir, em todas as nossas ações, o nosso bem com o da comunidade.
Greta Thunberg manifesta plena ciência disso ao refletir sobre que atitude devemos ter diante das questões ambientais. Primeiramente, ela reflete que a ânsia por acumulação de uma pequena parcela da humanidade ameaça a humanidade como um todo: “Estamos a ponto de sacrificar nossa civilização para que um número muito pequeno de pessoas continue a fazer um enorme montante de dinheiro. Estamos a ponto de sacrificar a biosfera para pessoas ricas em países com o meu possam viver na luxúria. Mas são os sofrimentos de muitos que pagam as luxúrias de poucos.”[9] Por isso Greta conclama a todos para agir tendo em vista a totalidade, tanto a humanidade, quanto o planeta em que vivemos: “Por seus filhos, pelos seus netos, pela vida e por esse belo planeta vivo” [10], pois nosso futuro ainda depende de nós. [11] Greta claramente distingue entre a ação egoísta e antissocial daqueles que visam apenas a acumulação da ação comunitária, que visa a preservação de nosso mundo como local adequado para vivermos. Greta enfatiza a cegueira da ação egoísta: os que visam apenas a acumulação às custas do meio-ambiente tornam sem sentido a própria acumulação, pois inviabilizam a vida de seus próprios filhos e netos.
De fato, a ação antissocial peca sempre pela ignorância, por não considerar que ela em última análise acaba por piorar a vida do próprio agente. O ato de jogar lixo pela janela do carro suja a mesma rua na qual o motorista dirige. Por sua própria culpa, a partir de agora ele passará por uma via suja. E, como o mau exemplo é contagioso, em breve muitos passarão a fazer o mesmo. E a cidade na qual o motorista vive pouco a pouco se degradará. Da mesma forma, a ânsia por acumulação às custas do meio ambiente acabará por destruir a médio prazo o lugar em que vive e a si mesmo. Greta percebe que os adultos aos quais se dirige não parecem ter plena ciência disso: “Como a crise climática é uma crise que nunca foi tratada como uma crise, as pessoas simplesmente não estão cientes das plenas consequências em nossa vida cotidiana.”[12]
Em razão disso, Greta decide iniciar uma greve escolar, colocando-se diante do parlamento sueco para protestar: “Quando a escola começou em agosto [de 2018], eu decidi que era isso era o bastante. Sentei-me no chão do lado de fora do Parlamento Sueco. Fiz greve escolar pelo clima.”[13] A partir daí, ela começou a experimentar algo comum a muitos que buscam fazer a coisa certa: o ódio e a incompreensão de pessoas ignorantes. Como Sócrates e muitos depois dele, entre os quais Musônio Rufo, filósofo romano e professor de Epicteto, e o próprio Epicteto, ambos exilados de Roma por se posicionarem publicamente contra a ditadura de maus imperadores, Greta passou a ser insultada e caluniada por homens poderosos. Mas, também como os estoicos citados, a menina, com coragem e serenidade, respondeu à altura seus agressores:
Para todos os políticos que nos ridicularizam nas mídias sociais, e me xingaram e me envergonharam, para as pessoas que dizem que sou retardada, prostituta e terrorista, e muitas outras coisas mais. Para todos vocês que optam por olhar para o outro lado todos os dias porque parecem mais assustados com as mudanças que podem impedir mudanças climáticas catastróficas do que as mudanças climáticas catastróficas em si. Seu silêncio é quase o pior de tudo. O futuro de todas as próximas gerações repousa sobre seus ombros.[14]
Greta tem plena ciência de que a impopularidade é um preço a pagar quando se almeja agir comunitariamente. Como parte dos humanos vive sem qualquer ciência de seu papel no mundo e de que é parte de algo maior, não são capazes de compreender uma ação que vá além do mero egoísmo, e logo passam a projetar a si mesmos, isto é, seu egoísmo advindo de sua incompreensão, sobre as ações alheias. Greta mais uma vez se alinha a Epicteto, que nos diz:
Quando discernires que deves fazer alguma coisa, faz. Jamais evites ser visto fazendo-a, mesmo que a maioria suponha algo diferente sobre <a ação>. Pois se não fores agir corretamente, evita a própria ação. Mas se <fores agir> corretamente, por que temer os que te repreenderão incorretamente? (Epicteto, Manual, 35 – Tradução A. Dinucci e A. Julien)
Da mesma forma, Greta age quando chega à percepção de que é preciso agir:
Estava tão frustrada porque nada estava sendo feito sobre a crise climática e senti que tinha que fazer algo, qualquer coisa. E, às vezes, NÃO fazer as coisas – como sentar do lado de fora do parlamento – fala muito mais alto do que fazer as coisas. Assim como um sussurro às vezes fala mais alto que gritar. [15]
Greta Thunberg se revela para nós como uma luz nas trevas. Por ser uma criança, por ser uma mulher, nos mostra em ação o melhor do pensamento epictetiano e o melhor da humanidade: o amor pelo mundo que nos cerca (ao qual ela repetidamente se refere como ‘nossa casa’) e a corajosa busca por uma ação comunitária que beneficie o planeta como um todo. Em uma época em que homens poderosos se encarregam de devastar a face da terra e disseminar o ódio e a separação entre os seres humanos, Greta brilha fazendo o contrário, mostrando que a filosofia e a sabedoria, combinadas com a ciência, tornam grande aqueles que se devotam a elas. Ninguém é tão pequeno para não fazer diferença. E Greta, com sua clarividência, coragem e determinação, tem se mostrado gigantesca.