Museu do Ipiranga reabre após reforma e ampliação

Agência FAPESP

Após uma década fechado para o público, o Museu Paulista reabrirá suas portas na próxima semana. Para quem olha de fora, as diferenças são discretas. No entanto, uma completa reestruturação interna modernizou o edifício do século 19, tornando-o completamente acessível a um público diverso.

A nova entrada fica ao lado do espelho d’água e dá acesso a um piso inteiramente novo, que integra o museu ao jardim francês, totalmente revitalizado. O Piso Jardim abriga um auditório com capacidade para 200 pessoas, uma área para exposições temporárias e outra para acolhimento dos visitantes, rasgada por uma janela curva de 30 metros com vista para o Parque da Independência.

O projeto arquitetônico – que inclui escadas rolantes e elevadores – permite que um visitante com mobilidade reduzida ingresse no edifício pela área de acolhimento, passe por todos os andares e chegue até o mirante, no topo do prédio. O novo Museu do Ipiranga também é acessível a portadores de deficiência visual, auditiva ou cognitiva. As exposições de longa duração são repletas de objetos interativos – feitos de pedra, porcelana, madeira, resina, tecidos e outros materiais – e com recursos multissensoriais, como alto relevo e descrições em Libras e em Braille.

Depois de um processo de reforma iniciado efetivamente em 2019, mas que deve ser recuado até 2014 se forem consideradas todas as etapas preparatórias, a reabertura coincide com as comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil. E transcorrerá em três dias consecutivos: 6 de setembro, com evento para autoridades e patrocinadores; 7 de setembro, com inauguração simbólica para convidados (estudantes de escolas públicas estaduais e municipais e trabalhadores da obra de recuperação com suas famílias); 8 de setembro, com abertura para o público em geral, previamente agendada no site da instituição.

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O Museu Paulista é um dos quatro museus da Universidade de São Paulo (USP) e o processo de restauração, modernização e ampliação do edifício de exposições envolveu uma parceria da universidade com entidades públicas e privadas, patrocinadoras do projeto, como destaca à Agência FAPESP o atual reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti Junior. “Foi uma jornada heroica para desenvolver um dos maiores empreendimentos culturais brasileiros dos últimos tempos. O Museu do Ipiranga é parte da identidade de nosso país e do imaginário do brasileiro. Agora, ao entregarmos o prédio do museu à população, restaurado, modernizado e acessível, queremos que ele seja também parte ativa e pulsante da cena cultural e social paulista e brasileira”, diz.

O reitor ressalta que as 12 exposições que serão abertas a partir da reinauguração “marcam uma nova fase curatorial da instituição, cujo impacto social e cultural se deve ao seu importante acervo e ao edifício que ocupa”.

Além da restauração e modernização do prédio histórico, destacam-se as obras de ampliação, que, acrescentando 6.800 metros quadrados (m2), dobraram a área útil do edifício de exposições.

“Diretamente acessível pelo jardim, a parte ampliada também contém salas de aula, salas de atividades educativas, cafeteria, loja e um novo saguão de exposições com cerca de 800 m2”, informa Rosária Ono, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e atual diretora do Museu Paulista.

Ono informa que todo esse espaço novo foi ganho no subsolo, por meio de escavações muito cuidadosas para não comprometer a estabilidade estrutural do prédio histórico. “Foi um enorme desafio técnico, para o qual contamos com a colaboração de engenheiros professores da Escola Politécnica da USP”, afirma.

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O professor Marco Antonio Zago, atual presidente da FAPESP, que era reitor da USP quando a decisão de reformar foi tomada, lembra de como o processo começou: “Em 2013, um ano antes de eu assumir, o museu foi fechado, pois o prédio oferecia grandes riscos para os visitantes. Logo que assumi, em 2014, eu o visitei, na companhia do então vice-reitor, Vahan Agopyan, que depois me sucederia na reitoria. As condições do edifício realmente eram terríveis, com vazamentos, pisos quebrados, escoras para segurar o teto etc. Nossa primeira preocupação foi saber se havia risco imediato de desabamento. Não havia. Mas, naquele momento, também não havia condições para a reforma, porque a universidade estava atravessando uma gravíssima crise financeira, com a interrupção de várias obras já em curso”.

Zago conta que foi realizada a reunião de uma associação de amigos do Museu Paulista, na qual vários empresários mostraram disposição de ajudar. “Mas era preciso angariar mais recursos. Eu conversei com o então governador Geraldo Alckmin, que se interessou bastante, porém, ressaltou que os recursos deveriam vir principalmente da iniciativa privada. E meu papel foi buscar esse apoio.”

Desse esforço resultou, tempos depois, uma chamada para empresas interessadas apresentarem projetos de reforma. E a proposta vitoriosa veio a ser aquela posteriormente implementada. “Foi uma proposta bastante inovadora e que, além da restauração extremamente criteriosa do prédio histórico, propunha praticamente duplicar a área, com várias adições modernas, a exemplo do que foi feito em outros grandes museus do mundo. A USP sozinha não seria capaz de arcar, nem mesmo de administrar uma obra desse porte. Quando saí da reitoria, com o projeto arquitetônico aprovado, já estava em andamento a transferência do acervo para que as obras pudessem começar. E o novo governador conseguiu atrair expressivos aportes financeiros da iniciativa privada. Fiquei muito emocionado ao visitar recentemente o edifício reformado e ver o resultado de tudo isso”, enfatiza Zago.

Ao lado da reforma, modernização e ampliação do edifício de exposições, um destaque, importante pelo valor histórico e simbólico, foi a restauração do quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo (1843-1905). Com seus personagens e ambientação altamente idealizados, essa obra conferiu tom épico a um acontecimento que, segundo testemunhas da época e pesquisas históricas posteriores, teria sido bem menos glorioso. A despeito disso, reproduzida em livros didáticos, ela se tornou, no imaginário de mais de uma geração de brasileiros, uma espécie de retrato oficial da nacionalidade.

“Além de reparar danos causados pela ação do tempo, buscamos devolver à pintura suas cores originais – retirando a sujidade acumulada com o tempo, recompondo pontos de perda na camada pictórica original e retirando vestígios de restauros antigos, como um amarelado indevido em certa região do céu”, informou, na ocasião, a pesquisadora Márcia Rizzutto, professora do Instituto de Física (IF-USP), que atuou como uma das assessoras científicas da restauração. Seu trabalho foi apoiado pela FAPESP no âmbito do Projeto Temático “Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a produção do conhecimento”, coordenado por Ana Magalhães.

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Mas a reforma do prédio histórico, o acréscimo de novas áreas de acolhimento e exposição e a restauração do quadro de Pedro Américo são apenas os aspectos mais visíveis de um processo muito maior. Nesse sentido, a ênfase na dimensão curatorial feita pelo reitor Carlotti é bastante oportuna, porque a reabertura do edifício não exibirá apenas um espaço totalmente renovado, compatível com o padrão dos grandes museus internacionais, e capaz de receber um público anual superior a 500 mil visitantes, mas mostrará também um novo conceito de acervos: não apenas uma coleção de itens luxuosos herdados das elites econômica e política do passado, mas um conjunto muito diversificado de objetos, que traduzem a vida da sociedade brasileira em seus múltiplos segmentos e em suas distintas épocas.

“As pessoas geralmente associam um museu ao seu espaço de exposição. Mas um museu é muito mais do que isso. Entre outras coisas, é uma unidade de produção de conhecimento científico, um centro multidisciplinar de pesquisa, inovação e difusão. Mais de 80% do trabalho dos profissionais envolvidos ocorre nas reservas técnicas, nas atividades de prospecção, coleta, catalogação e conservação de itens, bem como no esforço para comunicar os resultados posteriormente à sociedade”, afirma a historiadora Solange Ferraz de Lima, que foi diretora do Museu Paulista de 2016 a 2020 e participou intensamente de todas as etapas do processo de restauração, modernização e ampliação.

A reserva técnica do museu contém mais de 450 mil itens. Destes, cerca de 3.800 serão exibidos nas exposições da reabertura, dando ao público uma ideia geral do que é o museu e do que nele se faz, ampliando a representatividade social.

“Esses itens estão organizados em três grandes áreas: ‘universo do trabalho’, com ferramentas, moldes, bancadas, tipos para impressão; ‘cotidiano e sociedade’, com objetos domésticos, instrumentos de cozinha, peças de mobiliário e decoração; e ‘história do imaginário’, com retratos, paisagens, cartões-postais, rótulos de embalagens etc.”, conta Ferraz de Lima.

A pesquisadora destaca que os acervos contêm inclusive itens bastante efêmeros, geralmente descartados, mas que, reunidos em sequência, fornecem um retrato muito vivo da sociedade e suas dinâmicas. É o caso de uma inusitada coleção de papéis de embrulhar balas.

Uma etapa preparatória para a reforma e modernização do edifício foi retirar e levar para longe todos esses itens. Por meio de auxílio ao projeto “Cultura material e gestão de acervos”, conduzido por Ferraz de Lima, a FAPESP aportou recursos bastante polpudos para que os objetos pudessem ser adequadamente acondicionados, transportados com segurança e guardados em condições de controle ambiental e em mobiliário apropriado em cinco imóveis adaptados para funcionar como reservas técnicas e laboratórios. “Esse auxílio foi absolutamente fundamental. Sem ele, não teríamos podido nem iniciar a reforma”, reconhece a diretora Ono.

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Os acervos e todo o trabalho de pesquisa realizado com eles continuarão a ocorrer nos cinco imóveis adaptados. E será assim até que a instituição venha a dispor de um edifício único que funcione como centro de cultura material e abrigo para uma reserva técnica visitável.

“O edifício histórico nunca mais voltará a abrigar a reserva técnica. Todo o espaço, agora duplicado, será destinado a exposições e ao acolhimento do público”, diz Ferraz de Lima.

Um exemplo bastante interessante do tipo de pesquisa que vem sendo realizada com os acervos é o projeto “Processamento de alimentos no espaço doméstico, São Paulo, 1860-1960”, coordenado pela historiadora Vânia Carneiro de Carvalho e executado pela equipe do Grupo de Pesquisa Espaço Doméstico, Corpo e Materialidades (Gema). O principal produto dessa pesquisa será o “Repertório Histórico Ilustrado de Ferramentas e Equipamentos de Cozinha”, um livro eletrônico que vai reunir textos e ilustrações sobre mais de 150 objetos de cozinha, com o objetivo de trazer subsídios para outras coleções museológicas e para pesquisas históricas de modo geral.

“Esse estudo diz muito sobre as dinâmicas da sociedade brasileira. Ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, onde o quase desaparecimento da profissão de empregada doméstica se fez acompanhar de uma rápida eletrificação dos utensílios de cozinha e do consumo maciço de comida enlatada, encontramos no Brasil uma situação bastante diferente. Aqui, o emprego doméstico se manteve até hoje, e não apenas nas casas de famílias ricas, tivemos um consumo muito menor de enlatados e os utensílios de cozinha exibiram, por muito tempo, uma notável coexistência de equipamentos manuais, mecânicos e elétricos. Houve uma espécie de resistência dos saberes artesanais”, afirma Carneiro de Carvalho.

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