Um grupo internacional de pesquisadores encontrou pela primeira vez em ambiente hospitalar uma espécie de fungo antes encontrada apenas em solos, Aspergillus latus. O grupo fez o sequenciamento do genoma da espécie e descobriu que ela é na verdade um híbrido, até três vezes mais resistente a medicamentos do que as duas espécies que lhe deram origem.
O estudo publicado na Current Biology por pesquisadores do Brasil, Estados Unidos, Portugal e Bélgica teve apoio da FAPESP.
A aspergilose é uma doença pulmonar causada por fungos desse gênero, principalmente o Aspergillus fumigatus, amplamente encontrado em plantas e no solo. Regularmente, respiramos esporos de Aspergillus, que em pessoas saudáveis geralmente não causam sintomas. Em pacientes com o sistema imune debilitado, porém, podem causar pneumonia, formar bolas de fungos nos pulmões (aspergiloma) e ainda se disseminar, causando aspergilose pulmonar invasiva, a forma mais grave da doença. O A. fumigatus é a causa mais frequente de aspergilose, mas outras espécies como o A. flavus, A. niger, A. nidulans e A. terreus também causam a condição.
“Em cerca de 90% dos casos, as infecções por fungos do gênero Aspergillus são causadas pelo A.fumigatus. Mas em algumas doenças genéticas humanas existe uma frequência maior de outra espécie, a A. nidulans. Então começamos a reunir material clínico de várias partes do mundo para verificar quanto essa última ocorria no ambiente hospitalar. Para nossa surpresa, seis das 10 amostras eram de um fungo que nunca havia sido encontrado infectando pessoas”, conta Gustavo Henrique Goldman, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP-USP) e coordenador do estudo com Antonis Rokas, da Vanderbilt University, nos Estados Unidos.
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O sequenciamento genético da espécie revelou ainda que o A.latus é, na verdade, um híbrido de duas espécies relativamente distantes e que carrega o DNA completo de ambas. Testes realizados por outros grupos já haviam demonstrado que A. latus pode ser até três vezes mais resistente a antifúngicos do que as espécies que lhe deram origem, A. spinulosporus e um parente desconhecido de A. quadrilineatus. Ele ainda é mais eficiente no combate a células imunes humanas.
“Isso mostra que é extremamente vantajoso para o fungo ser um híbrido. Para realizar o melhor tratamento e não gerar resistência aos fármacos existentes, é importante identificar precisamente a espécie que está causando a infecção”, explica o pesquisador.
Goldman lembra, no entanto, que poucos hospitais hoje no Brasil têm condições de fazer um sequenciamento genético e identificar os fungos que contaminam os pacientes com uma precisão maior do que o gênero. A identificação é normalmente feita pela análise da morfologia, por meio de exame no microscópio – o que dá margem a diagnósticos errados. As amostras de A. latus do estudo, por exemplo, haviam sido previamente identificadas por esse método como A. nidulans.
Fungos e a Covid-19
A presença de fungos no ambiente hospitalar é um conhecido fator de agravamento de doenças e mesmo de óbito. Com a colaboração de pesquisadores da Alemanha, o grupo de Goldman está agora reunindo amostras de fungos presentes nos pulmões de pacientes com Covid-19. A ideia é verificar como esses organismos podem piorar o quadro da doença, a fim de desenvolver estratégias para evitar e combater infecções.
“Existem diversos casos de Covid-19 que chegaram a óbito devido à concomitância da doença com infecção por Aspergillus. Atualmente, temos quatro cepas que foram isoladas de pacientes que morreram por Covid-19 na Europa e vamos realizar o sequenciamento genético para verificar quais as espécies e se elas são favorecidas pela doença”, diz.
O pesquisador busca parcerias no Brasil para coleta de material, mas o procedimento para isolar as amostras depende de um protocolo clínico bastante rigoroso – que ainda não existe no país – a fim de não contaminar os profissionais de saúde e pesquisadores com o novo coronavírus. Na Europa, o protocolo experimental foi implementado a tempo para a pandemia.
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Os casos de concomitância de Covid-19 com infecção por fungos do gênero Aspergillus mostram a importância de se conhecer melhor esses microrganismos. Presente em todo o globo, o A. fumigatus, por exemplo, consegue sobreviver a condições extremas, como temperaturas de até 70° C e baixa disponibilidade de nutrientes, podendo extrair alimento até mesmo da água. “Agora mostramos outra característica do gênero, que é a formação de híbridos”, diz o pesquisador.
No estudo publicado agora, os pesquisadores reuniram 10 amostras de fungos encontrados, na maior parte dos casos, em material coletado de pacientes não só com aspergilose broncopulmonar alérgica como outras condições, como a doença granulomatosa crônica, causada por uma disfunção genética que prejudica o sistema imune, e doença pulmonar obstrutiva crônica, como enfisema e bronquite.
As amostras foram recolhidas em Portugal, Estados Unidos, Canadá e Bélgica. Com o sequenciamento, apenas três foram confirmadas como A. nidulans. Uma foi identificada como A.quadrilineatus, fungo de solo que também infecta humanos, e as outras seis como A. latus, até então encontrada apenas em amostras de solo e plantas.
Evolução
Além do fato de ser o primeiro fungo filamentoso híbrido conhecido por causar doenças em humanos – algo relativamente comum em leveduras como as do gênero Candida, causadora da candidíase –, outra curiosidade é o fato de o híbrido ser diploide, ou seja, suas células contêm dois conjuntos de cromossomos, assim como todas as células humanas, com exceção dos óvulos e espermatozoides. Na maior parte dos casos, fungos são haploides, com apenas um conjunto de cromossomos.
O híbrido ainda manteve intacto o DNA das duas espécies que lhe deram origem, sugerindo que a fusão é recente. Em híbridos mais antigos ou espécies que divergiram de um ancestral comum há muito tempo, há uma recombinação de genes, com alguns sendo perdidos ou trocados de posição ao longo da evolução.
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Um exemplo de híbrido conhecido é a mula, que herda uma média das características do cavalo e do burro que lhe dão origem. No caso do A. latus, porém, todo o material genético dos progenitores foi mantido integralmente.
“Outra curiosidade é que as duas espécies que formam o A. latus têm mais ou menos a mesma distância genética entre si que o Homo sapiens tem dos lêmures”, diz Goldman, referindo-se aos primatas que vivem na ilha de Madagascar, na África.
Este artigo foi originalmente publicado em Agência FAPESP.