Pensando a (Im)perfeição de Deus ou do Cosmos no Estoicismo de Epicteto

Aldo Dinucci
Menina iraquiana chegando em campo de refugiados após sangrenta batalha perto de Mosul. (Foto de Al-Fahdawi/Reuters)

Nestes dias de pandemia, como em outras situações críticas, a humanidade se divide em duas: aqueles que creem que serão salvos por um deus ex machina, isto é, um Deus que, agindo por meio de milagre, salva uns tantos, deixando outros tantos morrerem, e aqueles que se entregam e abandonam seus esforços, achando que tudo está perdido.

Os primeiros se entregam a vã esperanças. Imaginam que existe um Deus e que ele é tão injusto a ponto de salvar uns e deixar outros tantos morrer, como quando uns poucos se salvam em um grave acidente. É óbvio que Deus, caso exista, nada pode ter a ver com isso. Ou ele seria injusto, o que é uma contradição com a própria ideia de Deus.

Os segundos também se entregam de modo vão, pois não acreditar em nada leva a não agir, enquanto, em meio às calamidades, há sempre muito a fazer. Como observa Snyder, ´se nada é verdadeiro, então ninguém pode criticar o poder, porque não há base sobre a qual se possa fazer isso.´ (Timothy Snyder. On Tyranny: Twenty Lessons from the Twentieth Century. Tim Duggan Books, 2017.)

Ambos são modos de se iludir. Um leva a uma ilusão de otimismo que, uma vez desmascarada (pois a vida nunca se deixa enganar), conduz à desilusão da segunda posição, culminando em inação e covardia.

Os estoicos em geral e Epicteto em particular têm uma concepção diferente de Deus, nem otimista nem pessimista, mas realista. Para os estoicos, Deus é o próprio Cosmos, o mundo. Ele não está fora do mundo nem o criou do nada, mas, sendo ele próprio corpóreo, se identifica com o mundo material.

Epicteto parece se deparar com o famoso paradoxo de Epicuro sobre os Deuses, que pode ser assim resumido: ou Deus deseja impedir os sofrimentos humanos, mas é incapaz; ou não deseja, mesmo sendo capaz; ou deseja e é capaz. No primeiro caso, é fraco. No segundo caso, maligno. O terceiro caso não é verdadeiro, pois há sofrimentos no mundo.

Crisipo busca explicar a existência de imperfeições no mundo, argumentando que Deus não poderia ter presciência das inter-relações entre os efeitos das cadeias causais, o que explicaria os efeitos colaterais que verificamos no mundo, como doenças,por exemplo.

Epicteto segue essa reflexão, apresentando-a por meio de um diálogo imaginário entre Deus e ele. Epicteto ele mesmo foi muito sensível ao sentimento das crianças. Nosso filósofo, já com mais de 70 anos, adotou uma criança que ia ser deixada para morrer por um pai na extrema miséria. De fato, é evidente que todos os dias fenecem pessoas inocentes. E crianças morrem de câncer, em intenso sofrimento. Muitos apresentam argumentos para tentar harmonizar a morte desses inocentes com a ideia de um Deus todo-poderoso. Mas não Epicteto! (E não eu também. Neste ponto me solidarizo com todos que perderam filhos pequenos). Ele está ciente das imperfeições deste mundo e do enorme sofrimento que há pelo mundo afora. Diz-nos Epicteto:

Desse modo, como era devido, os Deuses puseram sob nosso encargo apenas a melhor de todas as capacidades, aquela que comanda, aquela que usa corretamente as representações. As demais não estão sob nosso encargo. Então isso é assim porque os Deuses não quiseram colocar as demais também sob nosso encargo? (8) Parece-me que, se pudessem, confiariam a nós as demais, mas absolutamente não o puderam. (9) Pois, estando nós sobre a terra, e tendo sido unidos a tais corpos e tais companheiros, como seria possível, em relação a esses, não sermos entravados pelas coisas externas?
E o que diz Zeus?
– Epicteto, se fosse possível, faria o teu diminuto corpo e as tuas diminutas posses livres e desembaraçadas. Assim, não te esqueças: este corpo, argila finamente trabalhada, não é teu. Mas já que isso não pude te dar, dei-te uma parte nossa: a capacidade para o impulso e o refreamento, para o desejo e a repulsa – em suma: aquela que faz uso das representações. Se cuidares dela e nela colocares as tuas coisas, jamais sofrerás entraves, jamais serás impedimento para ti mesmo, não te queixarás, não censurarás ninguém, não adularás ninguém. (13) E então? Essas coisas te parecem insignificantes?
– De modo algum!
– E tu te contentas com elas?
– Juro pelos Deuses !

Epicteto, Diatribes, 1.17 – Trad. A. Dinucci)

“Deuses”, “Deus” e “Zeus” ocorrem como sinônimos em Epicteto. Referem-se ao princípio cósmico que determina o fluxo de todas as coisas, sendo, por isso, também o destino (heimarmene); o princípio material de tudo o que existe (pois os estoicos não concebem nenhuma realidade senão a corpórea); o que confere aos seres vivos as habilidades que necessitam para sobreviver, sendo, por isso, também a providência (pronoia); e o conjunto das leis da Natureza, sendo, por isso, também a Razão Universal (logos). Para os estoicos, a providência cósmica se manifesta pelo fato de termos nascido com as capacidades necessárias para enfrentar os acontecimentos, por mais difíceis que sejam. Epicteto é bem claro quanto a isso:

Há, porém, coisas desagradáveis e difíceis na vida […] Pois bem: não recebestes capacidades com as quais podeis suportar todas as coisas que acontecem? Não recebestes grandeza de alma ? Não recebestes coragem ? Não recebestes constância ? Assim, quanto às coisas que acontecem, o que ainda me causará preocupação se eu tiver grandeza de alma? O que me confundirá ou me agitará? Ou o que me parecerá aflitivo ? Não usarei a capacidade que recebi, mas lamentarei e gemerei por causa das coisas que acontecem?

Epicteto, Diatribes,1.7.28 ss. – Tradução A. Dinucci

Para Epicteto, temos igualmente motivos tanto para lamentar quanto para agradecer pela vida que nos foi dada. Não pedimos para nascer, está claro. E a vida está longe de ser algo fácil, indolor. Por isso, Epicteto nos urge à coragem, à filantropia, à paciência, à perseverança.

Nesse sentido, o destino, no estoicismo, está em nossas mãos (Quanto a isso, leiam Bobzien, Freedom and Deteminism in Stoicism. Oxford, 2001). Se, por um lado, muito do que há por vir está prefixado, por outro, somos também partes de Deus e autores do nosso destino. Como nos diz Epicteto, somos fragmentos da divindade, quer dizer, da razão cósmica que governa e constitui o mundo (Epicteto, Diatribes, 2.8.11). O mundo de Epicteto é com certeza um mundo pleno de beleza, mas também repleto de tristeza e sofrimento, no qual Deus não é onipotente, pois não pôde fazer tudo o que queria. Cabe a nós ajudar a divindade, o Cosmos, neste aspecto. Cabe a nós ajudar o Cosmos na construção de um mundo melhor para nós mesmos. Nesse sentido, para Epicteto,o Cosmos não seria o melhor dos mundos possíveis, como diria muitos séculos depois Leibniz, mas somente o mundo que foi possível e no qual vivemos.

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