Cavalo de Troia do bem: cientistas criam formas inovadoras para tratar a raiva

Jornal da USP

Estudo da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP propõe forma inovadora para tratar a raiva, doença negligenciada que, anualmente, mata mais de 60 mil pessoas no mundo, a grande maioria na África e na Asia. Os cientistas do Laboratório de Raiva da FMVZ usaram um composto de proteínas – espécie de “cavalo de Troia do bem” – para carregar os anticorpos contra o vírus da raiva até dentro das células cerebrais de camundongos infectados. Os anticorpos conseguiram inibir a ação do vírus de modo intracelular, impedindo a replicação e a infecção das outras células.

Presente de grego

O “cavalo de Troia” foi uma estratégia usada pelos gregos para vencer a Guerra de Troia, narrativa que mescla história e mitologia e que teria ocorrido entre os séculos 12 e 11 a.C. Soldados gregos teriam se escondido em uma grande estátua de madeira, em forma de cavalo. Acreditando se tratar de um presente que simbolizava a rendição dos rivais, os troianos levaram a estátua para dentro da cidade. À noite, os soldados saíram da estátua, abriram os portões de Troia e a cidade foi tomada pelos gregos, que venceram a guerra.

Nos tempos atuais, a expressão “cavalo de Troia” remete à informática: é um tipo de vírus que se camufla em um arquivo aparentemente inofensivo, mas que infecta o computador com um vírus quando acessado.

Aqui, usamos a expressão “cavalo de Troia do bem” como uma analogia para descrever a ação do composto usado como veículo carreador de anticorpos da pesquisa da FMVZ.

 Dos dez animais infectados que receberam o tratamento, sete sobreviveram sem nenhuma sequela neurológica e três morreram em decorrência da raiva. No grupo controle, a mortalidade foi de 90%. Esse grupo também recebeu anticorpos contra raiva, porém, sem o agente carreador. Isto sugere que os anticorpos precisam entrar na célula para inibir o vírus.

“São resultados iniciais, ainda é preciso testar em outros modelos e ampliar o número de animais submetidos a tratamento para poder confirmar, efetivamente, que esse tratamento é promissor”, pondera o biólogo Washington Carlos Agostinho, autor da dissertação de mestrado que investigou o tema. A orientação do trabalho foi do professor Paulo Eduardo Brandão, coordenador do Laboratório de Raiva. Segundo Brandão e Washington, de todas as doenças negligenciadas que existem atualmente no mundo, a raiva é a mais negligenciada entre elas. A doença é fatal em praticamente 100% dos casos. Até hoje, foram relatados somente cinco casos de pessoas que conseguiram sobreviver após apresentarem os sintomas da doença: todas ficaram com sequelas, como paralisia e dificuldades de fala.

Ultrapassando barreiras

A proposta da pesquisa de Agostinho, Transfecção de anticorpos como terapia antiviral para a raiva, foi desenvolver um tratamento para quando os sintomas da doença já estão instalados. Em relatos de casos humanos há ocorrência de mal-estar, tontura, náuseas e vômitos, dores musculares e de cabeça, dificuldade em falar e engolir, espasmos musculares e confusão mental. Ocorre aumento da temperatura, hipersensibilidade a ruídos e à luz, além de hidrofobia – aversão à água e nome pelo qual a doença também é conhecida.

Transmitido pela saliva de mamíferos infectados, o vírus da raiva, do gênero Lyssavirus, penetra na pele através de escoriações causadas pela mordedura ou arranhadura do animal. O vírus se move ao longo do sistema nervoso periférico, uma rede de neurônios que se ramificam desde as extremidades, como dedos e pés, em direção à medula espinhal. Assim que o vírus da raiva chega aos gânglios da raiz dorsal e medula espinhal, segue em direção ao sistema nervoso central e depois se espalha para o cérebro. Quando os sintomas ocorrem é porque o vírus já percorreu o sistema nervoso periférico e chegou ao sistema nervoso central. Neste estágio, há muito pouco a fazer.

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Ciclo de transmissão do vírus da raiva – Infografia: Beatriz Abdalla

Um dos grandes problemas no tratamento da doença, segundo o pesquisador, é fazer os fármacos ultrapassarem a barreira hematoencefálica, uma proteção natural do corpo, espécie de cordão de isolamento que impede que vírus, fungos, bactérias e outros corpos estranhos – entre eles, os anticorpos contra o vírus da raiva – cheguem ao sistema nervoso central. Foi então que os pesquisadores decidiram agir, exatamente, neste local.

“Cavalo de Troia do bem”

Washington explica que o lado externo das células apresenta algumas proteínas aderidas que conferem a elas uma carga elétrica negativa. Já os anticorpos também apresentam carga elétrica negativa. Aqui vale lembrar das aulas de Física, em especial das que tratam de eletricidade: cargas elétricas de sinais iguais se repelem, cargas elétricas com sinais diferentes se atraem.

E é aí que entra o “cavalo de Troia do bem”. Trata-se de um composto lipídico catiônico que apresenta carga positiva. Esse composto foi usado para englobar o anticorpo do vírus da raiva. É como se o composto fosse uma mochila, e o anticorpo, o conteúdo dentro dela. Dentro do composto, o anticorpo foi empacotado pela carga positiva.

Como as células têm carga negativa e o anticorpo dentro do composto passou a ter carga positiva, quando os pesquisadores inocularam o “cavalo de Troia do bem” dentro do encéfalo dos camundongos infectados, célula e anticorpo se atraíram. O anticorpo entrou na célula (processo chamado de transfecção), onde conseguiu atacar o vírus da raiva, impedindo sua replicação e a infecção de outras células.

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O composto foi  misturado com uma solução de anticorpos. Ao ser inoculado no cérebro dos animais, o complexo pode ou se fundir diretamente com a membrana plasmática (que delimita as células) e entregar o anticorpo diretamente dentro da célula (1), ou pode ser internalizado por ela e depois se fundir com o endossomo (uma espécie de compartimento responsável pelo transporte e digestão de partículas celulares), liberando o anticorpo no citoplasma (fluido existente dentro das células)  (2). O anticorpo fica livre para neutralizar o vírus (3) – Infografia adaptada de Manual Bioporter Genlantis

“A pesquisa demonstra que é possível utilizar anticorpos produzidos contra o vírus da raiva de um modo que, inovadoramente, faz esses anticorpos entrarem nas células e combaterem o vírus”, destaca o orientador do trabalho, o professor Paulo Eduardo Brandão.

Protocolo de Milwaukee / Protocolo do Recife

Desde a descoberta da vacina da raiva, em 1885, na França, pelo cientista Louis Pasteur, até os dias atuais, foram relatados, em todo o mundo, apenas cinco sobreviventes: dois nos Estados Unidos (2004 e 2017); um na Colômbia (2008); e dois no Brasil (2008, em Pernambuco, e 2019, no Amazonas). Mas todos ficaram com sequelas. Essas pessoas foram tratadas com o Protocolo de Milwaukee, que consiste em induzir o estado de coma no paciente, seguido da aplicação de fármacos antivirais. No Brasil, ele foi adaptado e recebeu o nome de Protocolo do Recife.

Por Valéria Dias.

Este artigo foi publicado originalmente em Jornal da USP, clique aqui para ver o original.

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