Espermatozoide tem função mais importante na evolução do que se sabia

SoCientífica
Foto: NASA’s Marshall Space/Flickr-CC

Sabe-se que uma mutação genética só passa de uma geração para a outra se estiver presente nos genes dos gametas dos pais – no óvulo ou no espermatozoide, no nosso caso. Mas ainda é alvo de debate a forma como mutações adaptativas – aquelas que beneficiam o organismo de alguma forma, seja dando a ele maior capacidade de sobreviver ou de deixar mais filhos, por exemplo – se espalham e se fixam em uma determinada população ou espécie. Um artigo publicado na última quinta-feira revista especializada Genome Research propõe uma explicação que passa pela seleção natural nas únicas células dos machos de humanos e outras espécies que carregam só metade dos nossos pares de cromossomos: os gametas masculinos.

Mutações adaptativas dão origem a genes novos, o que, no jargão dos cientistas, não se refere a mutações individuais, mas sim àquelas presentes no nível da população. “Genes novos são os genes que existem numa espécie, mas não existem nas outras que são aparentadas. Eles surgiram recentemente na evolução”, explica a bióloga Maria Dulcetti Vibranovski, professora do Instituto de Biociências (IB) da USP e supervisora do estudo relatado no artigo. Ela, que assina o artigo junto com o professor aposentado Paulo Otto e a estudante de pós-graduação Júlia Raíces, investiga os padrões de surgimento de novos genes ao longo do processo evolutivo.

A bióloga conta que, inicialmente, a ideia do estudo era responder a uma pergunta: por que novos genes aparecem mais ativos nas células germinativas masculinas? Que eles são mais ativos nessas células já era um dado conhecido pelos cientistas, algo que se aplicava tanto aos mamíferos quanto a espécies de plantas. Um dos aspectos dos genes novos que intrigam a comunidade científica é justamente o fato de uma proporção exagerada deles ter funções exclusivas do sexo masculino.

Mosca-das-frutas

Em trabalhos anteriores, a pesquisadora havia observado a mesma tendência nos testículos de moscas do gênero Drosophila, conhecidas como moscas-das-frutas. Ela trabalha com drosófilas porque esses insetos são um ótimo modelo para os estudos evolutivos: são pequenos, fáceis de manipular, têm um ciclo de vida de apenas uma semana e com uma única garrafa e um meio de cultura é possível criar um grande número de moscas.

O modelo proposto por Maria e seus colegas prevê que os novos genes têm maior possibilidade de se fixarem em uma determinada população ou espécie quando estão ativos em células haploides, do que em diploides. A diferença entre estes dois tipos de células é que o genoma da célula haploide é formado por apenas uma cópia de cada cromossomo, enquanto a célula diploide tem duas cópias. Óvulos e espermatozoides são células haploides que, quando se juntam, dão origem a uma célula diploide.

“Eles descobriram que a maioria dos genes novos funcionam nas últimas fases da formação dos espermatozoides (quando os cromossomos de origem materna e paterna já se separaram), o que não se sabia anteriormente”, disse ao Jornal da USP por e-mail o geneticista Antônio Bernardo Carvalho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele não participou da pesquisa, mas aceitou comentá-la.

Formação em três fases

Para compreender o modelo, é preciso entender como as células germinativas masculinas se desenvolvem. Esse processo, chamado de gametogênese masculina ou espermatogênese, acontece nos testículos (no caso das plantas, em estruturas com função análoga) e se inicia a partir da mitose de uma célula-tronco. Nessa primeira fase, a célula original se divide em novas células com o mesmo material genético. Até então, todas são diploides.

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Na sequência, elas passam pela meiose, uma fase na qual cada célula se divide em outras quatro que carregam apenas metade do material genético original. Ficam com uma cópia de cada cromossomo – ou seja, são haploides. Na última fase da espermatogênese, essas células haploides se especializam, alongam-se e criam cauda. Essa fase é chamada de pós-meiose.

Munindo-se de uma base de dados de experimentos anteriores e bancos de dados públicos, os pesquisadores usaram técnicas de bioinformática e modelagem matemática para testar alguns pressupostos do modelo. Os dados são de drosófilas, mas se aplicam a outros organismos, já que a gametogênese do pólen das plantas e dos espermatozoides humanos são gerados por um processo similar.

Eles observaram que os genes novos ficam ativos em volume muito maior na meiose e na pós-meiose do que durante a mitose, o que sugere que deveriam ter alguma função nas fases mais tardias. Na sequência, o grupo verificou que os genes ativos nas fases haploides têm uma assinatura de seleção positiva, uma informação no nível molecular que indica que esses genes trazem mutações benéficas, adaptativas. Funciona mais ou menos assim: quando a mutação traz alguma característica nova e benéfica para o organismo, a frequência do novo gene nos gametas dos indivíduos de uma dada população é maior do que quando a mutação é prejudicial, ou do que numa situação em que ela não ajuda nem atrapalha.

“Evolução funciona assim: eu tenho uma cadeira. Se eu mudo um pedaço da cadeira, é mais fácil ela se tornar uma cadeira não funcional do que uma cadeira melhor, certo? A maior parte das vezes que você tem mutação, vira uma cadeira que vai quebrar e não vai funcionar. Mas de vez em quando aparece alguma coisa boa. Toda a nossa diversidade vem de um processo que é aleatório. Então, para surgir uma coisa boa, tem que ter surgido várias coisas que talvez não sejam tão vantajosas”, explica Maria Vibranovski.

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Mosca do gênero Drosophila, modelo para os estudos evolutivos – Foto: Wikimedia Commons

Vale lembrar que genes novos não surgem de uma vez só em todos os indivíduos de uma espécie. “Vai surgir em alguns e, se for importante para aquele organismo e trouxer algum tipo de adaptação, aqueles indivíduos que portam o gene novo terão capacidade de sobreviver melhor ou deixar mais filhos. Com isso, ao longo das gerações, essa mutação pode se fixar, se tornar presente em todos os indivíduos daquela população ou daquela espécie”, afirma a professora do IB.

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A diferença está nos autossomos

Durante a espermatogênese, conforme as células se multiplicam e duplicam o material genético para, depois, reparti-lo entre os gametas, um gene duplicado pode sofrer mutação, ganhar uma nova função e se tornar um novo gene. Mas também pode acontecer do gene perder a função, virar um pseudogene e desaparecer ao longo do processo evolutivo. Na pesquisa do grupo do IB, faltava ainda determinar se as fases haploides da espermatogênese de alguma forma afetariam a probabilidade das mutações se consolidarem como novos genes.

Assim, os pesquisadores analisaram se a expressão dos genes novos era maior em alguns cromossomos do que nos outros. Expressão é o termo que os geneticistas usam para dizer que um gene está ativo, codificando proteína. Os resultados indicaram que os genes novos são mais expressos na pós-meiose em autossomos, os cromossomos não sexuais. Nos machos, todas as células têm uma característica haploide para os cromossomos sexuais, devido ao baixo número de genes do cromossomo Y. Pode parecer detalhe, mas isso faz com que os genes do cromossomo X estejam numa situação haploide desde aquela primeira mitose, ao contrário do que ocorre com os genes dos autossomos.“Você espera que tenha uma vantagem em ter essa expressão na pós-meiose. A gente sabe que os genes novos estão mais no cromossomo X do que nos autossomos, mas neste caso não há uma vantagem relativa maior da pós-meiose”, diz Maria Vibranovski.

Eles concluíram que ser haploide é vantajoso para aumentar a frequência dos genes novos, acelerando a seleção natural. E demonstraram matematicamente que esses genes se espalham pela população em muito menos gerações quando estão ativos nas células das fases haploides do que quando estão na fase diploide.

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Isso acontece porque a célula diploide tem dois alelos – formas diferentes de um mesmo gene – para cada localização no DNA. Cada um desses alelos fica num cromossomo diferente. Assim, quando surge um gene novo na célula diploide, ele tende a ser um alelo recessivo, que só vai se manifestar se for idêntico ao seu par – como acontece com o albinismo, por exemplo. “Imagine que apareça um gene novo favorável, cuja vantagem só se manifesta quando há duas cópias iguais dele num indivíduo: há uma enorme chance de ele ser perdido porque, quando um gene aparece, ele é raro na população. E assim quase nunca ocorrerá duas vezes no mesmo indivíduo”, explica Antônio Bernardo.

A situação é completamente diferente com a célula germinativa haploide. “Os autores do estudo propuseram uma nova explicação para proporção exagerada de genes novos que têm funções nos machos: estes genes evoluem mais facilmente quando têm funções masculinas porque os machos têm uma fase mais prolongada em que o material genético do pai e da mãe estão separados, o que permite a expressão de genes recessivos”, diz o professor da UFRJ. “Se este gene tiver função no sexo masculino (mais especificamente, na formação dos espermatozoides), ele terá uma chance muito maior de ser favorecido pela seleção natural, porque nas fases tardias da formação dos espermatozoides ele estará sozinho”, complementa ele.

“Os resultados apresentados provavelmente são gerais e devem ser válidos para outras espécies. Ainda que naturalmente estimulem nossa curiosidade para ver se estes achados se mantém em organismos haplodiploides (como abelhas), bem como examinar o comportamento de genes expressos no pólen e outros casos”, comenta Louis Bernard Klaczko, professor do Instituto de Biologia da Unicamp, que também não participou do estudo. “Além disso, mostram que mesmo uma fase pequena do ciclo de vida como a de espermatozoides pode ter grande importância evolutiva”, acrescenta.

A pesquisa do IB teve apoio da Fapesp e do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-Tronco, um Cepid sediado na USP.

REPRODUZIDO DE:

Espermatozoide tem função mais importante na evolução do que se sabia [Jornal da USP].

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