Não deve haver balbúrdia na relação entre a ciência e a fé

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De uns tempos para cá o mundo tem se assemelhado cada vez mais a uma festa estranha com gente esquisita. Posições extremistas e desprovidas de qualquer sustentação científica alimentam uma improvável luta contra qualquer tipo de vacinação – o que já levou a cidade de Nova York a enfrentar um anacrônico surto de sarampo – ou apregoam que a Terra é plana, negando conhecimentos de séculos. Alguns, mais extremistas, vão além: para esses terra-planistas radicalíssimos, nosso planeta teria, na verdade, o formato de uma rosca, com buraco no meio e tudo. Sim, nós viveríamos em um donnut. Isso, sem se falar na velha questão que opõe criacionismo e evolucionismo, com Adão, Eva e a serpente de um lado, e dinossauros esperando o meteoro do outro. Mas o mundo não precisa ser assim. E, na verdade, não é, apesar de pessoas que levam ao extremo crenças muitas vezes estabelecidas em bases frágeis.

Ciência e fé não são conceitos excludentes, pelo contrário. Pode-se dizer que estão interligados e que são complementares. Para além da famosa frase de Einstein, que disse que Deus não jogava dados com o universo, a ciência não é a única fonte de fatos e a religião vai além do reino dos valores e da moral. Na verdade, a religião pode ter um impacto positivo sobre a ciência, como ocorreu no desenvolvimento da moderna ética médica. E muitos cientistas do passado eram cristãos devotos, assim como o são alguns líderes no meio científico de hoje.

Um exemplo é o Prêmio Templeton que o físico e astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser recebeu recentemente. O prêmio é uma espécie de Nobel da espiritualidade. “Gleiser é um dos principais proponentes de que ciência, filosofia e espiritualidade são expressões complementares da necessidade da humanidade de abraçar o mistério e explorar o desconhecido”, disse Heather Templeton Dill, neta do banqueiro e criador da premiação John Templeton.

Outro bom exemplo dessa convivência harmoniosa é o recém-publicado volume Teologia & Ciência (Ed. Kapenke), organizado pelo doutor em Filosofia da Educação pela USP e subeditor de Cultura do Jornal da USPRoberto C. G. Castro. O livro, que traz quatro alentados ensaios, tem um subtítulo muito apropriado: Aproximações entre a razão e a fé.

Mal-entendido secular

“O aparente conflito entre teologia e ciência é resultado de um mal-entendido, como dá a entender o historiador francês Georges Minois já no título de um de seus livros sobre o assunto, L’Eglise et la science – Histoire d’un malentendu (“A Igreja e a Ciência – História de um mal-entendido”)”, afirma Castro logo na abertura de sua introdução ao volume. “Como ele afirma, desde as origens, duas vias se ofereceram ao ser humano para responder à pergunta mais elementar e mais insolúvel de todas: por que existe o ser em vez de nada? Essas vias são a fé e o estudo da natureza. A primeira foi canalizada pela Igreja – ou pelas Igrejas – e a segunda, pela ciência”, prossegue ele.

E é aí que reside o tal mal-entendido aludido por Minois e citado por Castro: ao procurar responder a essa questão secular, integrantes das duas correntes foram para campos opostos, quando na verdade deveriam ter caminhado juntos. Enquanto religiosos procuraram respostas na Bíblia, o livro da revelação, sábios da ciência foram buscar a solução no livro da natureza. “As duas obras, vindas da mesma fonte, deveriam coincidir, mas, como elas empregam linguagens diferentes, logo surgiram mal-entendidos”, escreve Minois.

Por um bom tempo, esse imbroglio fez com que a Igreja perseguisse sábios como Giordano Bruno, Copérnico e Galileu – para ficarmos apenas em exemplos para lá de conhecidos. Tudo porque teimavam em ir contra doutrinações do Vaticano. Onde já se viu achar que a Terra é redonda, não é o centro do Universo e gira em torno do Sol? À fogueira com eles. Bruno foi, os outros dois quase – eppur si muove.

Mas os tempos passaram, iluminismos de vários escopos se solidificaram, as Igrejas tiveram cada vez mais laivos de tolerância, muralhas foram derrubadas sem precisar de toques solenes de trombetas e muitas das divergências entre ciência e religião – ou teologia – foram limadas, por mais que aqui ou ali ainda haja arestas a serem aparadas. Isso, sempre haverá. Mas a aproximação foi feita, o tangenciamento e a interação existem.

E o volume Teologia & Ciência prova bem isso, com os artigos escritos por acadêmicos e especialistas que não comungam do agnosticismo ou ateísmo muitas vezes cobrados por ortodoxos de vários matizes.

É o caso do físico Roberto Covolan, professor da Unicamp. “A mim parece estar-se desenvolvendo, em certos círculos, uma atitude intelectual mais do que aberta, voltada mesmo para aceitar a existência de propósito no Universo e trazer essa discussão do plano filosófico para o campo científico, em contracorrente à cosmovisão ainda predominante”, afirma ele em seu artigo “Razão e propósito do Universo”. Esse “propósito” ao qual se refere Covolan estaria pautado em um “autêntico diálogo entre fé e ciência”.

É claro que a questão ainda está em aberto, muito ainda será discutido a respeito e não serão o prêmio de Gleiser e esse Teologia & Ciência que encerrarão o debate. Mas é importante entender que racionalismo e fé, ciência e religião não são conceitos excludentes. Até porque, de várias formas, elas fincam suas bases na filosofia, a mãe de todas as ciências – e aquela que prega o amor pela sabedoria, experimentado apenas pelo ser humano consciente de sua própria ignorância, como ensinou Pitágoras. E, convenhamos, em tempos de balbúrdia, filosofia é sempre essencial.

REPRODUZIDO DE: Não deve haver balbúrdia na relação entre ciência e fé [Jornal da USP].

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