Blade Runner, uma introdução ao estoicismo(I): o ideal de amorosidade

Aldo Dinucci

Em 2012 tivemos o trigésimo aniversário tanto do lançamento do filme Blade Runner, do diretor Ridley Scott[1], quanto da morte do escritor de ficção científica Philip K. Dick (que doravante chamarei simplesmente de PKD), cujo livro intitulado Do Androids Dream of Electric Sheep? (Sonham os Androides com carneiros elétricos?)[2]  baseou a película. Antes de tudo, é preciso dizer que PKD[3] é universalmente considerado um dos mais importantes escritores de ficção científica de todos os tempos, sobretudo pelo caráter filosófico e questionador de seus romances e contos. Ao invés de se fixar em imaginar sofisticados mundos tecnológicos futuros com personagens unidimensionais, projetando para o amanhã os conflitos políticos de sua época, PKD procurou, em seus escritos, avaliar o impacto do desenvolvimento tecnológico sobre os indivíduos e seus os sistemas de valores. Assim, os romances de PKD exploram mundos nos quais sistemas de valores bizarros criam sistemas autoritários contra as quais indivíduos racionalmente críticos ou simplesmente revoltados se indispõem[4].

PKD percebeu que um mundo tecnologicamente avançado não significa necessariamente um mundo de valores ordenados científica ou racionalmente. Profetizando ou antecipando nossos dias, PKD imaginou sociedades ao mesmo tempo altamente desenvolvidas tecnologicamente e governadas por valores desumanizantes e totalitários. O filme Blade Runner conseguiu sintetizar tais concepções de PKD a ponto de ser visto hoje como exemplificando o debate acerca da pós-modernidade[5].

Ora, nos últimos anos, houve, para o espanto de muitos que trabalham com filosofia antiga, uma retomada de interesse pelo estudo e pela prática do estoicismo antigo, e parece-me ser o filme em questão uma ótima introdução ao estoicismo antigo, contendo, além disso, algumas explicações de sua retomada.

Uma evidente propriedade do mundo que se nos é apresentando em Blade Runner é seu caráter artificial, tecnológico, sombrio, antinatural e moralmente desumano. Os cenários são sempre sombrios, noturnos, a chuva é constante. Não há plantas ou animais. Os poucos animais que fazem sua aparição na película são artificiais, como na cena em que revoa uma coruja, não passam de cópias sintéticas de animais que não existem mais em um mundo pós-guerra atômica. De fato, o atual mundo das grandes cidades é de forma similar artificial e tecnológico, sombrio pela poluição e desumano por não ser um espaço destinado a seres humanos, como o são as cidades feitas para se caminhar através, como, por exemplo, Londres, com seus inúmeros parques. Nas grandes cidades pós-modernas, como São Paulo, por exemplo, é impraticável caminhar. São cidades feitas para carros, caminhões e aviões, não para os pés humanos. São cidades nas quais se sente nitidamente o isolamento nas multidões, o despertencimento, a solidão das metrópoles, talvez descrita pela primeira vez por Allan Poe em seu conto O homem das multidões.[6]

Rick Deckard, o caçador de androides que protagoniza a película, é um homem isolado em uma metrópole sombria. No filme, vive solitariamente. No livro, vive com sua esposa, mas ainda sim solitariamente, já que, em uma atmosfera típica da contemporaneidade, sua mulher o despreza e ocupa seu tempo com tecno-religião: no apartamento onde vivem, há uma máquina pela qual ela experiencia uma visão da totalidade através da subida virtual de um velho por uma escarpa íngreme, do alto da qual são atiradas pedras que acertam o idoso, ferindo igualmente aqueles que sobem virtualmente com ele a montanha. Podemos dizer que a esposa de Deckard, no livro, representa os que se renderam, nos dias atuais, às religiões de massa. Deckard, porém, não pode se entregar a tal espiritualidade pós-moderna. Esta espiritualidade focaliza no sofrimento individual e na fuga deste sofrimento apelando à emoção. Mas, para Deckard, essa saída não está disponível. Para ele, tal deixar-se levar é esteticamente impossível. É como querer apreciar música ordinária quando se tem ouvido apurado. Sua visão da realidade lhe exige algo mais racional e elevado. De fato, ao final da película, na primeira versão do filme, Deckard escapa amorosamente da cidade pós-moderna rumo à natureza com a bela androide que ele humanizara e ensinara a amar[7]. Deckard é, portanto, um amante, alguém para quem a relação amorosa cumpre na vida um papel central[8]. Além disso, por seu caráter amoroso, não é um cético: Deckard se guia por um ideal de reunião, de comunidade amorosa.

De fato, o estoicismo é uma filosofia que pode oferecer bases teóricas firmes para esse tipo de experiência da realidade. Para os estoicos, o objetivo das virtudes humanas é viver de modo concorde com a natureza (Ário Dídimo, Epítome de Ética Estoica, 5b3), visto que a eudaimonía (que traduzimos mal em nossa língua por ‘felicidade’, significando mais algo como ‘estar possuído por uma boa divindade’) depende da concordância com a Natureza (Ário Dídimo, Epítome de Ética Estoica, 5b 5[9]). Em termos modernos e simples, o estoicismo preconiza que a plenitude advém da harmonia com a natureza, primeiro com a própria e, logicamente, em seguida, com a natureza cósmica. Assim, a espiritualidade estoica se funda em uma visão holística pela qual o humano, se harmonizando consigo mesmo, se harmoniza com o Cosmos.

Entretanto, essa reunião com o Cosmos passa necessariamente pela separação da cidade pós-moderna. Tal como os antigos estoicos, Deckard dá as costas ao mundo atual, operando algo como uma alienação positiva tal como postulada por Marcuse[10].

No princípio do filme, Deckard faz um pedido de noodles em uma barraca de rua de comida chinesa. Autêntico homem da multidão, Deckard está de costas para e oculto na multidão. Seu tempo interno é outro. Não vive a atualidade que lhe querem impor. Seu tempo é, de fato, outro, como no poema de Vinicius:

De manhã escureço

De dia tardo

De tarde anoiteço

De noite ardo.

A oeste a morte

Contra quem vivo

Do sul cativo

O este é meu norte.

Outros que contem

Passo por passo:

Eu morro ontem

Nasço amanhã

Ando onde há espaço:

— Meu tempo é quando[11]

Entrementes, seu tempo interno é interrompido por algo que vem do exterior. Um oficial de polícia (Bryant) convoca Deckard a voltar ao serviço de eliminar androides, observando que, se Deckard não aceitar a incumbência, será considerado “little people”, isto é: “gentinha”[12]. É justamente nesta escolha que residirá ou antes despertará uma das facetas do estoicismo de Deckard. Embora em um primeiro momento ele aceite a incumbência, o sofrimento que lhe é gerado por essa reimersão na realidade de seu tempo e pela separação em si mesmo de seu ideal de amorosidade cósmica o faz, ao fim, recusar com intensidade a incumbência desumana de matar androides e escapar da cidade com Rachel, a androide que humanizara e ensinara a amar. Esta última parte talvez alguém diga que não seja propriamente estoica no sentido antigo do termo. Entretanto, antigos estoicos viram na união amorosa entre homem-mulher um vínculo capaz de reaproximar o humano da natureza cósmica. Como nos diz o estoico romano Musônio Rufo:

 

O principal no casamento é a comunidade de vida e de criação de filhos. Pois, disse Musônio, é preciso que o marido e a esposa se unam um ao outro por isto: para viverem um com o outro, ter filhos e considerar todas as coisas como comuns e nada como particular, nem o próprio corpo. Com efeito, é grande a gênese do homem que o próprio casal produz. Mas isso não basta ao cônjuge, pois que também poderia acontecer de outro modo fora do casamento, do mesmo modo que os animais se unem. Certamente é preciso haver no casamento companheirismo e cuidado mútuo do homem e da mulher, <quando> saudáveis, <quando> doentes, em toda ocasião, cada um desejando <isso> do mesmo modo que desejam ter filhos no casamento. Com efeito, onde o próprio cuidado é completo, e os que convivem fornecem mutuamente por completo esse cuidado, também <os dois> competem em vencer um ao outro <nisso>. Esse casamento, com efeito, é admirável e é digno de elogios; pois bela é tal comunhão.[13]

(Continua)

Notas

[1] SCOTT, Ridley. Blade Runner. Warner Brothers,1982.

[2] DICK, Philip K. Do androids dream of electric sheep? New York: Doubleday and Company, 1968

[3] Philip Kindred Dick viveu entre 16 de dezembro de 1928 e 2 de março de 1982. Vencedor do prêmio Hugo de ficção científica em 1963, publicou 44 romances e aproximadamente 121 contos.

[4] BAUDRILLARD (Two essays: 1.simulacra and science fiction. IN: Science Fiction Studies, n. 55, Volume 18, Parte 3, 1991) nos diz que PKD Dick não cria um cosmos alternativo, pois “o leitor está, desde o início, numa simulação total sem origem, passado ou futuro. Não é uma questão de universos paralelos […] ou mesmo possíveis. É hiperreal. É um universo de simulação”.  Isso porque, para Baudrillard, em PDK pela primeira vez temos o fim da duplicidade que caracterizava a ficção científica: os mundos de PKD não são outros mundos em relação ao nosso, mas mundos sem exterioridade, nos quais os leitores são atirados “sem espelhos ou projeção ou utopias como meios de reflexão”.

[5] Cf. ISTVAN CSICSERY-RONAY. Marxist theory and science fiction. IN: The Cambridge companion to science fiction. Edward James; Farah Mendlesohn (ed.). Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 122.

[6] Cf. https://istoe.com.br/375695_A+SOLIDAO+DAS+METROPOLES/

[7] https://youtu.be/B3l1iUUq_fE

[8] Tal caráter de Deckard é belamente ilustrado na cena do unicórnio que foi retirada da versão final q eu foi a público, mas  que pode ser vista aqui: https://youtu.be/t7PAQ-Bhlug

[9] Cf. L.S. 1.3989

[10] Cf. Luiz Antonio da Silva Peixoto, Marcuse: cultura, ideologia e emancipação no capitalismo tardio, disponível em http://www.revispsi.uerj.br/v11n1/artigos/html/v11n1a08.html

[11] Vinicius de Moraes, POÉTICA, Rio de Janeiro , 1954.

[12] O diálogo entre ambos é o seguinte:

Bryant:  Stop right where you are. You know the score pal. If you’re not cop, you’re little people.

Deckard: No choice, huh?

Bryant: No choice pal.

(cf. o script de Blade Runner disponível em http://www.trussel.com/bladerun.htm).

[13] Musônio Rufo, Diatribe 13. Tradução de Aldo Dinucci. Cf. http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/attachments/article/178/DIATRIBES%2012%20E%2013%20DE%20MUS%C3%94NIO%20RUFO%20SOBRE%20COISAS%20RELATIVAS%20A%20AFRODITE%20E%20CASAMENTO.pdf

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