“Aventura indiana” (1766): Outro conto filosófico de Voltaire

Donato Ferrara
O vegetarianismo de Pitágoras, visto com bons olhos nesta tela de Rubens (Pythagoras Advocating Vegetarianism c.1618-30, Sir Peter Paul Rubens) é satirizado no conto de Voltaire que se vai ler

Pitágoras (1), em sua estada nas Índias, aprendeu, como todos o sabem, na escola dos gimnosofistas (2), a língua dos bichos e a das plantas. Passeando um dia por um prado bem perto do litoral, ouviu estas palavras:

— Que infeliz sou eu por ter nascido grama! Mal chego a duas polegadas de altura, e eis um monstro voraz, um animal horrível, que me esmaga com seus pés largos; sua boca está armada com uma fileira de foices afiadas, com que ele me corta, dilacera e deglute. Os homens chamam a esse monstro um carneiro. Não acredito que haja no mundo criatura mais abominável.

Pitágoras avançou alguns passos; encontrou, sobre pequeno rochedo, uma ostra a entreabrir-se; ele não acolhera ainda essa admirável lei segundo a qual é proibido comer os animais, nossos semelhantes (3). Estava a pique de engolir a ostra, quando ela pronunciou estas palavras amoráveis:

— Ó natureza! Como é feliz a grama, que, como eu, é obra tua! Quando cortada, ela renasce, é imortal; e nós, pobres ostras, em vão somos protegidas por dupla couraça; pérfidos nos comem às dúzias no almoço, e é coisa sem volta. Que destino pavoroso é o das ostras, e como são bárbaros os homens!

Pitágoras estremeceu; ele sentiu a enormidade do crime que ia cometer: pediu perdão à ostra, aos prantos, e recolocou-a bem consciamente sobre o rochedo.

Como cismasse profundamente em tal aventura ao retornar à cidade, ele viu aranhas que comiam moscas, andorinhas que comiam aranhas e gaviões que comiam andorinhas. “Todas essas pessoas, disse, não são filósofos.”

Pitágoras, ao entrar ali, foi empurrado, golpeado, atropelado por uma multidão de ladinos e ladinas que corriam aos gritos:

— Bem feito, bem feito! eles bem que mereceram!

— Quem? O quê? disse Pitágoras levantando-se. E as pessoas continuavam a correr e gritar: — Ah! quanto prazer teremos ao vê-los bem cozidos!

Pitágoras pensou que se falasse de lentilhas ou qualquer outro vegetal; nada disso, eram dois pobres indianos. “Ah! sem dúvida, disse Pitágoras, são dois grandes filósofos que se fatigaram da vida; eles estão bem dispostos a renascer sob outra forma (4); existe prazer em se mudar de casa, ainda que estejamos sempre mal alojados; sobre gostos não se discute.”

Ele avançou com a turba até a praça pública, e foi lá que viu uma grande fogueira acesa, e defronte da fogueira um estrado a que chamavam tribunal, e sobre esse estrado juízes, e esses juízes todos seguravam à mão uma cauda de vaca e traziam na cabeça um gorro perfeitamente semelhante às duas orelhas do animal que carregou Sileno quando este outrora visitara o país ao lado de Baco (5), depois de ter atravessado o Mar Eritreu sem molhar os pés e ter parado o curso do Sol e da Lua, como se conta fielmente nos Hinos Órficos (6).

Havia entre esses juízes um bom homem, bem conhecido de Pitágoras. O sábio da Índia explicou ao sábio de Samos qual era o tema da festa que se daria ao povo hindu.

— Os dois indianos, disse, não têm vontade nenhuma de ser queimados; meus severos confrades condenaram-nos a tal suplício; um por ter dito que a substância do Shakyamuni não é a substância de Brahma (7); e outro por ter suspeitado de que seria possível agradar ao Ser Supremo pela virtude sem segurar, na hora da morte, uma vaca pela cauda: pois, dizia ele, pode-se ser virtuoso o tempo todo e não se ter sempre uma vaca à disposição e com hora marcada (8). As boas mulheres da cidade ficaram tão amedrontadas com essas duas declarações heréticas que não deram sossego aos juízes até que decretassem o suplício desses infelizes.

Pitágoras julgou que, desde a grama até o homem, havia muita matéria de lástima. Ele, porém, argumentou perante os juízes e mesmo às devotas: e foi algo que somente aconteceu daquela vez.

Em seguida foi pregar a tolerância em Crotona (9); mas um intolerante ateou fogo à sua casa: ele foi queimado — ele, que havia arrancado dois hindus das chamas. Salve-se quem puder!

Fonte: VOLTAIRE. Romans et contes. (Org.: Henri Bénac). Paris: Classiques Garnier, 1957, pp. 481-483.

(Texto original também aqui.)

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NOTAS

(1) Sábio grego, nascido na ilha de Samos, célebre por seu apreço pela matemática e seus pendores religiosos (especialmente no que diz respeito ao esoterismo), viveu entre 570 e 495 a. C. Há poucas informações confiáveis sobre a vida de Pitágoras, mas sabe-se que fez longas viagens à África e ao Oriente, onde travou conhecimento com diversos sacerdotes e pensadores. Neste brevíssimo conto, Voltaire imagina um episódio da vida desse filósofo no momento em que este esteve na Índia.

(2) Gimnosofistas eram ascetas indianos que, por desprezo à materialidade, viviam nus.

(3) Um dos dados mais conhecidos da vida de Pitágoras era o seu vegetarianismo, tratado por Voltaire, como muitas outras doutrinas dos filósofos antigos, com sarcasmo, como se se tratasse de uma forma de ingenuidade.

(4) Outra crença fundamental de Pitágoras e seus seguidores era a da metempsicose ou transmigração das almas, provavelmente tomada de empréstimo aos hindus. Segundo essa ideia, todos os seres viventes seriam dotados de almas, indo das mais imperfeitas (as das plantas) às mais perfeitas (as dos seres celestes). A cada existência, a alma podia tomar por “morada” uma espécie diferente de ser vivo, de acordo com os méritos acumulados ao longo de milênios de nascimentos e renascimentos. Note que essa teoria também não era cara a Voltaire.

(5) Baco, deus grego do vinho e da embriaguez, e Sileno, o mais velho e ilustre de seus seguidores, eram frequentemente retratados juntos. A cavalgadura do beberrão Sileno era um asno.

(6) Os Hinos Órficos eram uma coletânea de cantos em que se exprimia a devoção a alguns deuses do paganismo grego, atribuídos ao poeta e músico mítico Orfeu. Eram um dos elementos centrais da religião dos mistérios órficos, culto iniciático com rigores ascéticos que contava com rituais e práticas que diferiam da religião popular dos gregos. Voltaire não estava interessado no conteúdo do orfismo, porém. Ao mencionar que, segundo certos mitos, Sileno fora capaz de cruzar o mar montado em um burro, tendo parado o curso dos astros, o autor lança luz sobre episódios das Escrituras judaico-cristãs em que lances semelhantes são relatados. Com efeito, nelas se diz que Jesus caminhou sobre as águas do Mar da Galileia e que Deus sustou o movimento do Sol e da Lua para Josué e os israelitas derrotarem os amorreus. Ainda que hoje existam interpretações alegóricas dessas passagens, durante muito tempo elas foram julgadas como literais pelos religiosos de modo quase unânime. A questão que Voltaire pretende pôr na mesa, neste conto que fala de fanatismo, é mais ou menos a seguinte: se alguém dá por verídicos os fatos extraordinários e as irrupções do sobrenatural que dizem respeito à sua religião, por que julga falsos os milagres e as maravilhas que animam os outros cultos?

(7) Shakyamuni (“o sábio do povo Shakya”) é um dos epítetos do Buda; Brahma é a divindade criadora do universo, de acordo com os hindus. A controvérsia aludida no texto (um questionamento sobre a natureza divina do Buda) deve ser entendida como uma referência indireta à própria cultura europeia, na qual certas polêmicas teológicas no seio do cristianismo acarretaram guerras e perseguições religiosas.

(8) A referência cômica à necessidade de se ter uma vaca perto de si no instante do passamento não se relaciona com crenças hindus (que Voltaire nem sequer conhecia bem), sendo bastante mais provável que se tratasse de um chiste direcionado contra a recomendação católica de confissão antes da morte.

(9) Cidade da Calábria (sul da Itália), onde Pitágoras fundou a sua escola de filosofia, por volta de 530 a. C.

Traduzido por Donato Ferrara

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