A filosofia tem um problema imaginário

Diógenes Henrique

De Amy Kind* para a Aeon

Os filósofos têm uma relação amor-ódio com a imaginação. René Descartes, por um lado, depreciou-a com “mais um obstáculo do que uma ajuda” ao responder as questões mais profundas sobre a natureza da existência. Tentar imaginar um caminho para a verdade metafísica, ele escreveu em Meditações sobre Filosofia Primeira (1641), é tão tolo como adormecer na esperança de obter uma imagem mais clara do mundo através dos sonhos.

No entanto, Descartes também dependia fortemente da imaginação em ensaios científicos e matemáticos, como em O Mundo ou Tratado da Luz (1633), no qual ele tentava evocar os detalhes dos blocos de construção básicos para estruturas como seres humanos, animais e máquinas. De acordo com o filósofo Dennis Sepper na Universidade de Dallas, Descartes confiou em uma espécie de imaginação “biplanar”, pioneira por Platão, em que um nível de realidade poderia incorporar e exibir relações que existissem em um nível diferente e vice-versa.

O filósofo escocês David Hume estava igualmente em conflito com a imaginação — especialmente quando comparada com percepção e memória. “Quando nos lembramos de algum evento passado, a ideia desse evento flui sobre a mente de maneira forçada”,  ele escreveu em Tratado da Natureza Humana (1738-40). Mas as imagens e as sensações imaginadas, continuou ele, são “fracas e lânguidas, e não podem, sem dificuldade, ser preservadas pela mente firme e uniforme por um tempo considerável”. No entanto, Hume também afirmou que os humanos são mais livres quando se dedicam à imaginação. A percepção pode nos mostrar apenas o real, disse ele, mas a imaginação pode ir além disso, para o reino do talvez, do “e se” ou do “e se somente”. Na verdade, “nada que imaginamos é absolutamente impossível”, disse Hume.

O que está por trás dessa aparente tensão no âmago da imaginação? Hume colocou o dedo sobre a ferida quando falou sobre como nossa facilidade para a fantasia nos ajuda a ir além e a mudar nossa realidade atual. Basta pensar em como as fantásticas máquinas aéreas de Leonardo da Vinci abriram o caminho para os irmãos Wright, ou como o romance de H. G. Wells, A Guerra dos Mundos (1898), inspirou o primeiro foguete espacial a combustível líquido, para ver a verdade dessa visão. Mas a imaginação também é restringida pela extensão de nossas percepções e experiências anteriores, disse Hume. “Nos deixe perseguir nossa imaginação para os céus, ou para os limites máximos do Universo; nós nunca avançamos um passo além de nós mesmos”, escreveu ele.

Uma maneira de resolver essa ambivalência seria dividir a imaginação em diferentes tipos. Nessa direção, no final do século 18, Immanuel Kant distinguiu duas formas de imaginação: a imaginação produtiva e a imaginação reprodutiva. A faculdade produtiva é o que ajuda a sintetizar e transformar o conteúdo sensorial em um todo significativo. Assim, a identificação de algo com orelhas e pelos pontudos, que mia e esfrega-se contra suas pernas, é reunida através da imaginação produtiva na forma de um gato. Essa tendência unificadora é implantada em cada mente humana independentemente da experiência. Para Kant, nossa imaginação produtiva é o que torna possível a percepção.

Em contrapartida, a imaginação reprodutiva é em grande parte sobre a lembrança. Quando uma história vem no rádio sobre um gato perdido há muito tempo que encontrou seu caminho para casa, você se inspira nos muitos gatos já vistos antes por você para imaginar a cena emocionante; essa seria a imaginação reprodutiva a trabalhar. Como a faculdade reprodutiva trabalha apenas com materiais previamente fornecidos aos sentidos de alguém, ela está sujeita ao tipo de limites que Hume discutiu.

A ambivalência de Kant sugere por que os filósofos tratam a imaginação com desespero e prazer. Talvez o tipo de imaginação que desprezemos seja totalmente diferente de seu prima mais útil. Mas ao aceitar esta subdivisão, desistimos da possibilidade de ver a imaginação como uma faculdade mental unificada — o modo que talvez seja mais como a experimentamos.

Quando penso em todas as coisas maravilhosas que podemos fazer com a imaginação, estou inclinada a uma maneira diferente de desvendar essa dualidade enigmática. Ao invés de cortar a imaginação em diferentes tipos, podemos pensar em seus usos distintos. Gosto de chamar essas funções da imaginação de transcendentes e instrutivas. Por um lado, quando fingimos, fantasiamos ou escapamos com a leitura de uma obra incrível de ficção literária, a imaginação pode nos levar além do aqui e agora. Por outro lado, quando imaginamos em uma tentativa de entender o que as outras pessoas estão pensando, ou resolver problemas ou tomar decisões, nossas especulações são usadas para nos ajudar a entender o aqui e agora. Enquanto nossos usos transcendentes da imaginação tendem a ser irrisórios e extravagantes, suas funções instrutivas apontam para o prático e para o real.

Em ambos os modos, o segredo para o sucesso parece estar na aplicação de uma espécie de restrição imaginativa. Mas o que é certo para um uso pode não ser adequado para o outro. Talvez a razão pela qual os filósofos tenham estado em conflito com a imaginação é que eles não entenderam como as limitações precisam ser adaptadas às circunstâncias. Quando estamos escrevendo ficção, ou brincado em jogos de fingimento ou fazendo arte, possivelmente fazemos o nosso melhor imaginando, definindo os limites amplamente ou removendo os grilhões inteiramente. Em contraste, quando empregamos a imaginação no contexto da descoberta científica ou tecnológica ou de qualquer outra solução de problemas do mundo real, devemos permitir que nossa imaginação seja enquadrada pela situação em questão.

Saber onde desenhar essas linhas não é fácil. Pode ser extraordinariamente complicado saber quais fatores devem permanecer em jogo e quais devem ser eliminados. Mas, observando como essas restrições operam, não só podemos ver nosso caminho para a grandeza imaginativa: talvez também possamos purgar a filosofia de sua ansiedade sobre a ideia. Afinal, como Hume observou, os humanos “são poderosamente governados pela imaginação”.

Este artigo foi originalmente publicado pela Aeon, uma revista digital para idéias e cultura. Siga-os no Twitter em @aeonmag ou no Facebook em AeonMagazine.

*Amy Kind é professora de filosofia no Claremont McKenna College, na Califórnia. Ela é autora de Persons and Personal Identity (2015) e e editora do Routledge Handbook of Imagination (2016).

Traduzido de “Philosophy has an imagination problem” de Amy Kind, publicado no Aeon em 07 de setembro de 2017.

 

Compartilhar