O multiverso é uma teoria científica?

Felipe Sérvulo
Imagem: Pixabay

Na linguagem comum, teoria significa simplesmente “uma ideia de como algo funciona”. Qualquer pessoa pode desenvolver uma teoria. Mas para criar uma teoria científica, você tem que fazer muito mais. Em particular, qualquer nova teoria científica deve observar o quadro atual da ciência, incluindo as atuais/melhores teorias líderes e todos os dados disponíveis, e conhecer os três seguintes critérios:

  1. Uma teoria deve reproduzir todos os sucessos da teoria existente anteriormente.
  2. Deve explicar alguns novos resultados que contradiziam ou estavam fora da velha teoria.
  3. E talvez o mais importante, ela precisa fazer novas previsões, testáveis que não tenham sido testadas antes, e que pode ser confirmadas, validadas ou refutadas.

Esses critérios são reproduzidos em toda a história da ciência moderna e anda lado a lado com os avanços científicos em praticamente todos os campos, desde os “simples” como a física até os “complexas” como a biologia.

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Imagem: Michael Perryman, via Eur.Phys.J. H37 (2012) 745 arXiv: 1209,3563 (physics.hist-ph).

O geocentrismo descritivo – com epiciclos, equantes e deferentes – foi substituído pelo heliocentrismo, com as elípticas e órbitas de Kepler, ampliado depois pela gravidade de Newton. Não foram só as posições e movimentos dos planetas que foram explicados. Através do heliocentrismo, entendemos as luas de Júpiter, fases, órbitas excêntricas de Marte e Vênus e novas previsões foram feitas sobre a periodicidade e retorno dos cometas.

Centenas de anos depois, a própria gravidade de Newton não conseguiu prever as características orbitais detalhadas de Mercúrio, e foi a Relatividade Geral de Einstein que não só reproduziu todos os sucessos de Newton, mas explicou anomalias orbitais de Mercúrio e fez previsões sobre o desvio da luz estelar por fontes gravitacionais que pode ser testado. Em poucos anos, a Relatividade Geral foi confirmada, e tivemos outra revolução científica em nossas mãos.

Imagens de crédito: New York Times, 10 de novembro 1919 (L); Illustrated London News, 22 de novembro 1919 (R).
Imagem: New York Times, 10 de novembro 1919 (L); Illustrated London News, 22 de novembro 1919 (R).

Partindo para um exemplo na biologia, a Teoria da Evolução de Darwin foi um grande exemplo: substituída pela genética e posteriormente substituída pela descoberta do DNA. A ciência avança desta forma: não invalidando o que veio antes, mas expandindo a ideia original para descrever melhor o conjunto completo de fenômenos aplicáveis no Universo.

Mas onde é que o Multiverso – o verdadeiro Multiverso – se encaixa nesta história, e o que ele é?

Para entender isso, vamos começar com a nossa imagem do próprio Universo. E pelo universo (com “u” minusculo), ou seja, o universo observável: a soma total de tudo o que podemos ver, medir e interagir.

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Imagem: Wikimedia Commons

Onde quer que olhemos no céu, vemos estrelas e galáxias, agrupadas em uma grande teia cósmica. Mas quanto mais longe olhamos no espaço, mais para trás no tempo olhamos também. As galáxias mais distantes são mais jovens e, portanto, menos evoluídas. Suas estrelas têm menos elementos pesados, elas parecem menores, a medida que menos fusões acontecem. Há mais galáxias espirais e menos galáxias elípticas  (que levam um certo tempo para se formar a partir de fusões), e assim por diante. Se seguirmos todo o caminho até os limites do que podemos ver, encontramos as mais precoces estrelas no universo, e depois uma região de escuridão além disso, onde a única luz é a sobra de brilho do Big Bang.

Mas o Big Bang em si – que ocorreu em todos os lugares ao mesmo tempo há alguns 13,8 bilhões de anos – não foi o começo do espaço e do tempo, mas sim o início de nosso universo observável. Antes disso, houve uma época conhecida como inflação cósmica, onde o espaço em si expandiu exponencialmente, cheio de energia inerente ao tecido do espaço-tempo.

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Imagem: Bock et al. (2006, astro-ph / 0604101); modificações por E. Siegel.

A inflação cósmica é em si um exemplo de uma teoria que veio e substituiu o que veio antes dela, na medida em que:

  1. Foi consistente com todos os sucessos do Big Bang e abrangeu toda a cosmologia moderna,
  2. Explicou uma série de problemas que o Big Bang não poderia fazer, incluindo por que o Universo tinha a mesma temperatura em toda parte, por que era tão espacialmente plano, e por que não havia relíquias de alta energia de sobra como monopólos magnéticos e
  3. Fez seis novas previsões distintas que poderiam ser testadas observacionalmente, cinco das quais foram confirmadas.

Há também, no entanto, uma consequência que a inflação prediz que nós não sabemos se podemos confirmar ou não: o Multiverso.

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Imagem: Pixabay

A forma como a inflação funciona está fazendo com que o espaço se expanda a um ritmo exponencial. Isso abrange tudo o que existia antes do quente Big Bang e tornou muito, muito, muito maior do que era anteriormente. Até aqui tudo bem: isso explica como podemos obter tal uniformidade, neste vasto universo. Quando a inflação termina, esse universo é preenchido com matéria e radiação, que é o que nós vemos do Big Bang. Mas aqui é onde a coisa fica estranha.

De acordo com os mecanismos viáveis que nos dão a inflação suficiente para produzir o universo que vemos, há também muitas regiões do espaço circundando o nosso próprio universo em que a inflação não termina imediatamente, levando a um fenômeno conhecido como inflação eterna.

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Imagem: E. Siegel. Regiões onde a inflação continua no futuro (azul), e onde termina, dando origem a um Big Bang e um Universo como o nosso (X vermelho).

Graças à mecânica quântica, a inflação tem a chance de acabar em qualquer região, em qualquer momento… mas também tem a chance finita de não terminar em qualquer região e em qualquer momento também. Onde a inflação termina, temos um quente Big Bang e um Universo – do qual podemos observar a parte que estamos – muito parecido com o nosso. (Indicado por “X” vermelho acima).

Mas onde a inflação não termina, produz mais espaço para inflar-se, o que dá origem a algumas regiões que terão Big Bangs quentes causalmente desconectados de nosso próprio [big bang], e outras regiões que continuarão a inflar.

E formam-se outros universos, e assim por diante.

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Imagem: NASA/WMAP

Agora há um grande número de cosias que nós não sabemos sobre esses outros universos, incluindo:

  • Será que eles têm as mesmas leis, partículas e constantes fundamentais físicas como o nosso?
  • Será que eles têm densidades semelhantes, propriedades histórias como o nosso?
  • Será que estamos de alguma forma emaranhados, quanticamente, com esses outros universos?

A resposta pode ser “não” ou “sim” para qualquer uma dessas questões; a suposição conservadora é que as respostas são “sim” e “não”, respectivamente, mas isso nos leva à questão principal: o Multiverso é uma teoria científica?

A questão é, o Multiverso não é uma teoria científica por si só. Pelo contrário, é uma consequência teórica das leis da física, à medida que elas estão mais bem compreendidas hoje. É talvez até mesmo uma consequência dessas leis: se você tem um universo inflacionário regido pela física quântica, o Multiverso é algo que acaba sendo inevitável de acontecer e isso finaliza o debate. Mas – muito parecido com a Teoria das Cordas – ele tem alguns grandes problemas: ele não prevê nada que seja observável e ele não prevê nada definitivo que pode-se verificar.

O Multiverso não necessariamente explica nada sobre o universo em que vivemos. Ele não resolve nenhum dos problemas pendentes que hoje temos. (E se você diz coisas como “paisagem”, “energia do vácuo”, “princípio antrópico” e “constante cosmológica”, você não entende o que “resolver” significa.) E o pior fora, ele não faz previsões concretas de algo que podem necessariamente ser observadas.

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Imagem: Flickr

Então, o que acontece quando colocamos tudo isso junto? Isso significa que o Multiverso – supondo que a nossa imagem atual do Universo e sua história sejam válidas – é provavelmente real. Há provavelmente muito mais no Universo lá fora além do que é observável para nós, e há provavelmente outros universos que começaram com outros Big Bangs que nunca vão interagir com o nosso próprio.

Mas isso também significa que o Multiverso está além do reino da testabilidade, mesmo em princípio. A única maneira que eu poderia imaginar para testar o Multiverso é catastrófica: restaurar o estado inflacionário, entrelaçar observadores que seriam esticados em diferentes regiões inflacionárias, e ver se a inflação termina e dá origem a coisas diferentes em momentos diferentes, presumindo que você pode aprender alguma coisa quando você quebrar o entrelaçamento quântico. (E eu não tenho certeza que você pode.)

Crédito da imagem: NASA / STScI / A. Felid.
Imagem: NASA / STScI / A. Felid.

Isso significa que você deverá sobreviver a um quente Big Bang, então boa sorte com isso. A menos que você possa, eu estou na frente cética: O Multiverso pode ser interessante e uma consequência teórica aparentemente inevitável da física. Mas até que possamos testá-lo cientificamente – e pode ser que não possamos – isso não é bom o suficiente para ser ciência. É uma conjectura teórica, que faz sentido, mas não é uma teoria científica, e graças às limitações do universo,  ele pode nunca ser.

Então o que é? Pode ser uma nova classe de tópicos que nós estamos começando a entender: a primeira metafísica “fisicamente motivada” já desenvolvida. Pela primeira vez, estamos compreendendo os limites do nosso universo, as informações contidas nele e o que podemos aprender sobre isso. Além disso? Depois disso? Talvez a resposta esteja realmente onde a metafísica começa e, talvez, é onde o Multiverso irá para sempre residir.

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